Renato Turnes fala sobre sexualidade, lutas e o envelhecer do homem gay no doc Homens Pink

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Muito antes de ser classificada como grupo de risco em 2020, a velhice já era motivo para medo (da morte, do esquecimento, da escassez). Para homens gays que deram a cara à tapa, sobreviveram ao tempo, à AIDS, à ditadura e aos preconceitos, a idade avançada é como um troféu. Em Homens Pink, documentário dirigido por Renato Turnes, as histórias e memórias de nove sobreviventes dão conta de como é o envelhecer do homem gay no Brasil — uma herança de lutas e exemplo de resistência para a comunidade LGBTQI+. O trailer foi disponibilizado pela La Vaca Companhia de Artes Cênicas aqui. A estreia do filme, previamente planejada para este ano, precisou ser reagendada em razão da pandemia e está prevista para depois do circuito de festivais.

Nesta entrevista, o ator e diretor de 46 anos compartilha as próprias memórias ao contar sobre o processo de produção e pesquisa para o documentário, contemplado com o Rumos Itaú Cultural. Nove homens gays idosos de Florianópolis e São Paulo se dispuseram a compartilhar memórias: Carlos Eduardo Valente, Celso Curi, José Ronaldo, Julio Rosa, Eduardo Fraga, Luis Baron, Tony Alano, Paulinho Gouvêa e Wladimir Soares.

Além do documentário, Turnes assina a criação de uma performance solo a partir dos relatos dos senhores entrevistados para atualizar memórias e recompor aquelas experiências a partir do seu lugar de ator-documentarista.

O filme tem trilha original assinada por Hedra Rockenbach e riquíssimo acervo imagético, com registros dos históricos carnavais do Roma, no Centro de Florianópolis, e também fotos dos arquivos pessoais dos entrevistados. Com estética de VHS e pegada oitentista, o doc é uma reverência aos que lutaram por nós. Um filme sobre a passagem do tempo. A produção é da La Vaca Companhia de Artes Cênicas, em parceria com a Vinil Filmes.

ENTREVISTA

Velhice, tabu e homens gays: por que contar essas memórias

Quando completei 40 anos, passei a refletir sobre o tempo e sobre o meu passado. Lembrei da minha juventude, de quando comecei a sair e a ter uma ideia de pertencimento a uma comunidade — algo que é bem comum entre LGBTQI+. Ainda na juventude a gente começa a procurar os pares. E então lembrei dos caras mais velhos que eu admirava. Eram gays adultos. Eu pensava: “essa pessoa é tão legal, descolada, sabe das coisas”. E eles nos ensinaram tudo, os próprios códigos de dentro da comunidade, onde ir, como se vestir, os dialetos, as falas, as palavras e piadas. E me dei conta que nunca mais os vi. Eles envelheceram. Muitos morreram.

A epidemia da AIDS

Quando teve a epidemia da AIDS, houve uma ruptura nesse processo que eu te narrei. Muitos adultos morreram. Eu vivi, muito novo, a epidemia. Mas já frequentava a comunidade. E os que vieram depois de mim perderam esse contato com os mais velhos, esse aprendizado. É uma ruptura dentro da comunidade com os que ensinavam as coisas. E isso se reflete em várias coisas: falta de memória, falta de reverência a quem veio antes. E isso dentro da própria militância — que vale dizer, não começou ontem.

Renato Turnes e Celso Curi, reprodução

Invisibilidade e envelhecimento

Comecei então a pesquisar a invisibilidade no processo de envelhecimento. A sociedade em geral não vê o velho. Ao mesmo tempo é isso contraditório, porque estamos envelhecendo e seguimos consumindo e produzindo. Dentro da comunidade LGBTQI+, o tabu da velhice parece ser ainda mais evidente. Isso porque é uma comunidade muito movida pela beleza do corpo. Ao envelhecer passamos a nos isolar, a não fazer mais parte daquilo. Os nomes são pejorativos. Começam a ter vergonha. Muitos deles, em situações vulneráveis, sofrem. Muitos não têm família, e isso acarreta uma volta ao armário. O sistema não está preparado para esse tipo de idoso e me refiro ao sistema de saúde, as casas de saúde.

Senso de comunidade

A comunidade LGBTQI+ existe com esse sentido de acolhimento. Quando a pessoa se percebe como LGBT, sofre discriminação já em casa, na escola. A comunidade é necessária no sentido de preservação, de proteção mesmo. Os pares se encontram para se fortalecer e se proteger. Por estarem sempre à margem, adquirem códigos e comportamentos muito próprios. É um código cultural específico. Pessoas periféricas ao modus operandi padrão. E nesse encontro recebem proteção, aprendizado, informação. Muitas pessoas iam para fora, porque o acolhimento estava em outras pessoas LGBTQI+. Esse processo passa por entender que é possível ter um futuro digno. É uma pena que no Brasil se usa pouco [a comunidade] e é uma discussão que se teme. É importante despertar nesse sentido. Tem muita rixa interna, é muito segmentada. Eu entendo importante o sentido de irmandade, de colaboração.

Os heróis estão mortos

Essas pessoas mais velhas eram referências para mim, eu queria ser amigo delas. Mas eu era guri. Tem um grupo que eu lembro: eram meus heróis. Achava-os lindos, bem vestidos, modernos. Morreram todos. Apagou. Apagou essa referência. Quando começaram a morrer, eu tinha 18 / 19 anos. Era um grupo de seis amigos. E curiosamente eles aparecem no filme, nas imagens de acervo sobre o carnaval do Roma, no Centro de Florianópolis.

Um filme sobre a memória

É menos um filme sobre a velhice e mais sobre a memória. Entrevisto homens de diferentes backgrounds: do teatro, cabeleireiro, jornalista. Eles contam como era a juventude e todos estão ligados por essa grande crise da AIDS. Alguns vivem ate hoje — e são sobreviventes no sentido literal mesmo. É um fato histórico que os une.

Histórias diversas de quem deu a cara à tapa

As histórias contadas no documentário são muito diversas. Sobre os personagens, não fiz seleção rígida, étnica ou socioeconômica. Partiu de algo bem espontâneo. Quando tinha conhecimento prévio de alguém era melhor, porque eu já chegava com mais intimidade e confiança para as entrevistas. Todos nos encontramos antes. E existia uma questão em se tratando dos mais idosos: o armário. Muitos passaram a vida no armário. Muitos viveram assim, casaram, formaram família, mas nunca abandonaram as práticas homossexuais. Então eu quis falar com os que deram a cara à tapa. Porque eu queria falar da luta. De gente que viveu os piores períodos da homofobia, e viveu enfrentando.

Luis Baron, reprodução

Sair do armário

O despertar é muito diferente para cada um, mas geralmente o drama começa em casa. No documentário aparecem histórias diversas, de homens que foram acolhidos pela família até os que foram colocados para fora de casa aos 14 anos.

A própria descoberta

Na performance eu falo a partir da minha experiência pessoal com a de outros. Lembro de umas cenas: era uma coisa mais estética, que me levava ao corpo masculino, já aos cinco anos de idade. Depois foram vários momentos de negação, principalmente na adolescência, quando a sexualidade aflora. “O que tem de errado comigo?” E acho que todos passam por esse momento. Vai contra o que os colegas de escola são. É a coisa da completude. Porque afinal não é só físico, é afetivo. Onde as coisas se juntam. Minha família nunca falou muito, então eu não precisei construir um discurso organizado. Rapidamente comecei a tacar o foda-se. E sei que minha realidade é muito particular.

AIDS, São Paulo, Santa Catarina

As experiências narradas no documentário são similares em alguns aspectos, porque os códigos são os mesmos. Faço perguntas: como era paquerar, arrumar sexo. Hoje você liga num aplicativo. Antes era perigoso, não era esse tipo de facilidade. Todos viveram a AIDS de forma muito similar. Eles contam como apareceu a doença, quando viram chegar perto, as pessoas que perderam, a dor disso. A devastação emocional, o retrocesso. As pessoas viviam um processo de liberdade. A ditadura estava acabando, as pessoas trancadas. E de repente é perigoso, é a morte. E os estigmas que isso gerou na comunidade. Porque todos eram potencialmente transmissores, sujos. Como lidar com estigmas? Um dos entrevistados conta que em um ano enterrou oito amigos. Hoje é inimaginável. De varrer todo o círculo de afeto.

Sempre a luta

Se não achasse que algum dia os preconceitos iriam acabar, não lutaria. Militância não é exercício de ego. E a memória é importante, temos que saber que tiveram pessoas que lutaram por mim, por nós, para que a gente não cometa os mesmos erros. A história não é tão simples assim. Temos que lembrar disso o tempo todo. A arte, o teatro e o cinema são espaços para não deixar esquecer, para contar e atualizar esses mitos. É para isso que serve. Para que a gente não esqueça. As pessoas não morrem mais de AIDS como antes. As pessoas têm mais diretos que antes: de casar, ter segurança. Mas por outro lado, hoje os ambientes estão mais repressivos. O governo de agora… Hoje a gente vive mais uma vez um ambiente inseguro. Os caminhos são de avanços e retrocessos. A violência continua, porque tem indicadores. A gente percebe que a violência continua.

A estética oitentista

Além dos depoimentos e fotos de acervo pessoal dos entrevistados, usamos no filme imagens do arquivo da TV Cultura de São Paulo e registros do Carnaval do Roma, em Florianópolis. A estética do VHS, meio anos 80, acabou dominando. A trilha sonora original, composta pela Hedra Rockenbach, traz esse timbre eletrônico oitentista. E tem muito forte esse lance da festa. As imagens de arquivo constroem essa narrativa, a da festa.

Reprodução

Turnes em cena

Eu me coloco em cena como documentarista e performer. Me senti à vontade para fazer isso. É esse olhar do mais novo em relação ao mais velho que fiz questão de manter. Ser o mais novo para entender e seguir adiante. E depois entendi que também era um pouco sobre mim. Eles eram símbolos. Eu me coloco em cena, me deixando ser afetado e tentando elaborar isso. As imagens do Carnaval no Roma, usadas no doc, evidenciam isso. No processo de pesquisa, me deparei com registros da festa, os amigos vestidos de mulher. Numa das fitas, encontrei vários personagens, inclusive eu. É como esse sentido da festa, é o espaço de resistência, de liberdade.

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