Entre Terras e Águas, Fotografia Digital. Da série “Céu de Chumbo”, 50x100cm, 2015. Caetano Dias / Reprodução
Para esta edição da coluna Ttéia, trago algumas obras do artista baiano Caetano Dias. Em conversa, decidimos disponibilizar, pela primeira vez de forma aberta, gratuita e na íntegra, o filme RABECA, para ser visto pelos leitores da Ttéia! Além disso, este texto é permeado por imagens, para que vocês se aproximem de um dos mais importantes artistas brasileiros da atualidade.
Assista em https://vimeo.com/70183667
O som da rabeca atravessa com sua força sonora e histórica todo o espaço do quadro do filme: o plano do fundo, o intermediário e o proscênio. É espacializado pelas mãos de um andarilho (Eder Fersant) que percorre o Sertão da Bahia, especificamente as cidades de Xique-Xique, Canudos e Correntina. O efeito pluridirecional do som provoca encontros súbitos em direção a corpos míticos e sedutores. Vestígios da rabeca são, aos poucos, encontrados no olhar e na corporificação de homens e mulheres, idosos e crianças, daquele vasto e imprescindível sertão. A rabeca é um instrumento que potencializa a história do sertão, e, na obra de Caetano Dias, ela simboliza a resistência: age como se ainda vivesse no passado, mas está sempre propensa a resistir e a permanecer no presente.
Dessa operação de integração da rabeca num contexto em que ela já foi protagonista, de reversão do tempo e de concentração neste instante singular – que é o contemporâneo –, surge o atravessamento de um tempo histórico, marcado por guerras e massacres. E, todavia, Rabeca nos faz perceber, já nos primeiros minutos, que Canudos é uma ferida incurável no Brasil. Para Caetano Dias, a força do sertão está na sua constante atualização, na resistência e no movimento que não reduzem distâncias, mas, certamente, ocupam intervalos. Aos três minutos, um canto é entoado na Roda do Saravá, onde uma mulher de branco (Alzeni Senhorinha de Queiroz) dança em movimentos circulares, e roda de um quadro a outro, aparecendo, na sequência, envolta por motocicletas, igualmente dançantes. No solo, no lugar de bois e jegues caminhando com focinhos cheios de poeira, a moto surge como um animal selvagem e já enraizado no cotidiano do povo.
A obra de Caetano apresenta o tempo da tragédia sem passado nem futuro, é repleta de narrativas que dobram e questionam as histórias oficiais. A sequência de imagens filmada em Canudos, que é a reconstituição de um fragmento do massacre que ocorreu naquela região, situa as questões colocadas acima: de um lado, a rabeca é simbolizada por um andarilho abrigado em um casebre de taipa típico da região; de outro, um atirador bombardeia o casebre até sua completa destruição – cena que é marcada pela violência social, aqui materializada na memória de Antônio Conselheiro. Para o artista, o tempo transita entre a origem e o retorno, entre os sons de tiros – que formam uma pequena sinfonia inspirada na música “Siegfried Funeral March”, de Richard Wagner –, e a experimentação sonora de Wilson Sukorski.
O trabalho de Caetano Dias não cessa de fazer referência ao chumbo e à água, numa relação ambivalente, na qual o primeiro, simbolicamente, pode ser associado à morte, e o segundo, à vida. Em Rabeca, o artista faz alusão a dois seres lendários da água que habitam o Rio São Francisco: o Nego D’água e a Mulher do Cabelo, também conhecida como Mãe D’água. Em uma das cenas mais instigantes e sedutoras do filme, a Mulher do Cabelo aparece transformada na alma da rabeca, numa relação de simbiose e pertencimento, através da qual uma leve movimentação de seus cabelos faz ressoar o som do instrumento para, em seguida, dissolvê-lo na luz que adentra o casebre de taipa.
Ainda que distintos, três outros trabalhos de Caetano Dias evocam a presença da água: Entre terras e águas, Ar Mar e Céu de chumbo. No primeiro, ele aponta o paradoxo do tempo da ruína e do instante da volta à vida, num ritual realizado apenas com um regador de plantas, em dois pontos icônicos da Bahia: o Vale da Morte, localizado em Canudos, e a Bahia de Todos os Santos, em Salvador. Atualizando a profecia de Antônio Conselheiro, “O Sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”, o artista rega o mar com a terra de Canudos e, Canudos, com a água do que foi, historicamente, a primeira capital do Brasil Colônia. Nas palavras de Caetano: “levei água da Baía de Todos os Santos para aguar as terras secas de Canudos numa alusão à profecia popular de que o sertão viraria mar e o mar viraria sertão, aí recolhi terra, poeira fina, do Morro da Favela e fiz o despejo no mar da Baía”.
Com efeito, a atração de Caetano Dias pela figura de Antônio Conselheiro é uma alternativa para discutir a noção de lugar e identidade, remetendo ao seu próprio sangue de “mestiço sertanejo”, como ele mesmo se define. Sua obra nos põe a refletir a respeito do que significa essa ferida incurável no Brasil, já que vivemos uma história de opressão e de sucessivos apagamentos da memória dos canudenses. Sua obra pode ser compreendida também como um memorial, a defesa de uma realidade pouco conhecida e ameaçada, dia a dia, ao esquecimento. Nesse sentido, o artista retoma e devolve, a todo instante, a memória e a história da construção deste país.
Ora, é precisamente nesse lugar, nesse intervalo construído pela profundidade do sertão, que o chumbo reaparece como constelação. Caetano Dias devolve à paisagem a munição responsável por sua destruição, não mais pela ótica da violência, mas pelo que ela representa, hoje, na sociedade brasileira: um tempo de chumbo. As fotografias “Cruzeiro do Sul” e “Sob o céu de 1897”, produzidas no Vale da Morte – um lugar de batalha entre os canudenses e o exército brasileiro – são atravessadas por “tiros” que perpassam o tempo e o espaço, tanto no sentido histórico quanto no sentido estético e formal. Esse é o atravessamento que conforma a imagem do infinito: ele obedece a um princípio de nudez que o corpo representa na porosidade da pele, permeada e orificial, e que é, na obra de Caetano, imagem irredutível do sujeito desterrado em sua própria terra.
Somos herança da escravidão e do luto inevitável que ela carrega. Uma herança que se faz presente no corpo e na obra de Caetano Dias, e que, diariamente, afeta o nosso entorno. Suas obras nascem dessas condições, da união entre instrumentos de guerra e instrumentos sonoros, de órgãos sem corpo que combinam a memória da morte com o som que ressoa e caracteriza nossa cultura. Caetano encarna a figura de Conselheiro, deitado sobre uma cama de urucum, reduzido a uma massa engulhenta de tecidos decompostos.
Caetano Dias (Feira de Santana/ Bahia, 1959) vive e trabalha em Salvador. É representado por Paulo Darzé Galeria de Arte.
Individuais: MAM/RJ; 2003 – Paço das Artes/SP; 2004 e 2006 – Marília Razuk Galeria de Arte/SP; 2001 e 2010 – Paulo Darzé Galeria de Arte/BA; Mac/CE e Museu Palácio da Aclamação/BA. 2015 – Céu de Chumbo na Blau Projects.
Coletivas: 2017-2018 – Axé Bahia: The powerofart in an Afro BrazilianMetropolis no Fowler Museum em Los Angeles. 2015 – Alimentário – Arte e patrimônio alimentar brasileiro no MAM/RJ e Oca Ibirapuera/SP; Frestas – I Trienal de artes Visuais, SESC Sorocaba/SP; Do Valongo à Favela – Imaginario e periferia/MAR/RJ; Expedição Terra – III Bienal da Bahia, Canudos/BA; 2013 – XVIII SESC/Videobrasil/SP; 2012 – Eu fui o que tu és e tu serás o que eu sou – Paço das Artes/SP; Da solidão do lugar a um horizonte de fugas – Berardo Museum, Lisboa/Portugal; 2011 – XVI Bienal de Arte de Cerveira/Portugal; Art In Brazil (1950/2011) – BOZAR/Belgica; 2010 – Tékhne, MAB/FAAP/SP; II Trienal de Luanda/Angola; 2009 – Continents à La derive, CRAC Languedoc-Roussilon, Séte/France; Paisagens Oblíquas – Fundação Berardo/Portugal; 2007 – Art Supernova, Art Basel Miami/Florida/EUA; Bienal de Valência/Espanha; 2006 – 29o Panorama da Arte Brasileira, MAM/SP; Interconnect@betweenattentionandimmersion, ZKM/Alemanha; Panorama da Arte Brasileira/MAM/SP; 2005 – DiscoverBrazil – Ludwig Museum, Coblence/Alemanha; 2001 – III Bienal de Artes Visuais do Mercosul/RS; Rede de Tensão, Paço das Artes/SP.
Prêmios: Residência LabMIS/SP; XVI SESC/Videobrasil/SP – Le Fresnoy/França; Prêmio VII Salão MAM/BA; com o filme de longa metragem Rabeca – XVIII SESC/Videobrasil/SP e FICC/BA – ABCV; VII Salão MAM/BA.