Próxima Parada: Márcia Mendonça

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 Noite

Por Márcia Mendonça

Durante dias e dias, olho a cabana ao pé da serra. Ela está coberta pelo véu da névoa que brota aos pingos da noite em seu telhado vermelho carmim. Observo atentamente as telhas justapostas e penso na delicadeza das mãos calejadas que as colocaram ali. A simetria foi o encorajamento para prosseguir. Em cada palha do encoberto, há um respingo do suor do habitante noturno. A transpiração escorreu entremeio às palhas e celebrou a beleza do sapé esculpido pelo tempo. Hoje, olhando o vermelho vibrante do telhado, vejo cada instante ali congelado pela neve que se demora em ir embora. Parece que o tempo cristalizou-se, a vida está morosamente desafiando-me a contemplar o telhado, a cor e a dor em seu de-morar. Sinto-me parte desta cor, sinto-me amalgamada pela tessitura e pelos nós a formar a trama, ela mora ali, bem ali, naquele lugar de palhas vermelhas, agora protegida pela neve, a resguardar o amanhecer. Quanto tempo faz desde que a alegria construiu, com as mãos embrutecidas, a urdidura das palhas vermelhas? O tempo, sempre o tempo. Só ele sabe.

Pintura de Henrique Mendonça Alves Vieira

Olho mais uma vez e deixo-me surpreender pelas folhas gigantes das árvores que ocultam a entrada da cabana. Não sei o porquê, mas, de repente uma grande alegria invadiu o meu corpo franzino. Contemplo, mais uma vez, as duas árvores em frente à porta e vejo ali a companhia perfeita para se passar os dias de inverno. Sei que parece um pouco improvável sentir alegria pela presença no mundo de duas árvores no inverno, mas o segredo da coisa é a presença e nisso o tempo não pode interferir, mesmo que elas envelheçam, elas sobrevivem. O lobo, quando chegar o sol, poderá olhar as cores amareladas e douradas das exibidas folhas, elas sorriem de contentamento! Existe alegria nesse longo inverno.  O que vale mesmo é ter a certeza do dourado do sol nas folhagens do velho Ginko Biloba. Ali, se revela e se desvela o coração do mundo. Lembrei-me de Mnemosine. É de suspirar de tanta beleza. As folhas formam uma teia entrelaçada de luzes amarelas, no chão, o tapete real se esparrama para todos os lados e o vento sopra, nos ouvidos, a alegria do sol a conversar com o tempo. Há de se saber que há outra árvore no lugar e tem folhas vermelhas. Sim há, e não é menos importante, existe nela uma imponente realeza.  A agitação toma conta de mim e penso: dá para bordar o tempo em suas linhas finas e invisíveis. Assim sendo, ele fica eternizado nas cores vermelhas e douradas de sol. Achei tanta graça desse pensamento bobo. Acredito piamente que a deusa da imortalidade apareceu neste instante bordando as árvores em seu painel branco e atemporal. O inverno tem a beleza do esperançar o amanhã.

Apetece-me sorrir ao olhar o tecido nu em meu solitário instante de exílio, nele cabe todas as expectativas geradas no íntimo da mente. A crisálida está no tempo certo de acontecer, o embrião pulsa latente contando os minutinhos para encontrar o mundo em toda a sua complexidade. Após o desabrochar da vida o olhar dirá: et vidit, et credit. Sim, só quem consegue romper o casulo pode repetir a oração, só quem remove a pedra do túmulo pode ter para si o milagre da vida. Só quem vive o inverno pode sentir a primavera chegando. Existe uma crença no inútil, aquilo que tangencia os elementos compostos e complexos da mente humana. Segundo Aristóteles o homem é o único animal que sabe rir. Nesse ponto coloco uma interrogação: sabe mesmo rir o homem? É necessário olhar além do deserto, é preciso refletir para além das dores abraçadas ao mundo. É preciso fechar os olhos e sentir. É preciso curvar-se diante da noite escura e reconhecer o véu noturno. Se não houver trevas, as estrelas sucumbem ao anonimato eterno. Fecho os olhos e vejo o dançar das estrelas cadentes. Nelas se encontra a expectativa do nascer outra vez. O casulo está rompendo, a dor é a potência da vida a pulsar, minuto a minuto. A angústia move os músculos do corpo inerte diante do inverno rigoroso. O corpo se despedaça e atinge o limite do ser, o ser movimenta, move-se e olha a escuridão, o abismo de si. Na agonia, os olhos atingem o seu limite e vê o brilho, o relampejar das estrelas, dessa forma, reencontra a liberdade. O corpo dormente sente-se vibrante e um pouco confuso por experienciar o pulsar do coração.  

Aos poucos, cada parte do corpo diz a palavra presente, pode-se entender a palavra presente em toda a abrangência de significados que abarca o verbete. Assim, as várias significações entram na fila para ocupar o lugar da origem. Nesse ponto, a soberania acontece. O verbo acontecer me parece oportuno nesta hora tumultuosa e com notas de bergamota. Meus olhos querem adestrar os espaços calorosos da cabana, meus olhos querem sentir o pulsar do coração vibrante abrigado na cabana de telhados vermelhos. Meus olhos serrados querem ver, mas não somente ver, eles desejam ultrapassar a incógnita. Eles querem compreender o que me olha. Ouço as labaredas de fogo, elas serpenteiam entre si, brincam fazendo graça de si mesmo.  Existe um misto de alegria e temor ao pensar no fogo soltando cores profundas e fazendo malabarismos. Dou um passo para trás, mas dentro de mim tenho a certeza de que o gelo se derreterá em miligramas de lágrimas, lágrimas delicadas como pétalas de rosas. Por onde caírem, o perfume da sua existência será rememorado. Às vezes, é necessário lágrimas para que a fragrância se fixe no batente da porta entreaberta. As cores vibram como tambores, é hora de despertar, ouço as cores serpenteando na fogueira! Há uma celebração na noite escura. O verbo se mistura ao pensamento, as cores dançam. A palavra sobeja “eus” e é proposital, o presente se abre diante do mundo inquieto. É tempo de dar tempo ao eu, ao quarto. É tempo do olhar sentir o poder das cores dentro do vazio que assombra a janela ao lado da noite.

Reverencio o olhar que pousa no acaso das cores. A dor serpenteia sem nome, sem endereço, sem ao menos dizer o porquê do estar aí! estar-aí ou será o-ser-aí?  Somente as lâminas das serpentes, ao cruzar o ar, podem reconhecer o respirar que habita as paredes de madeira. As paredes têm vida, história, mas é preciso o mundo parar para que se escute o tagarelar das paredes. É tempo de ouvir o tempo! Aqui do meu lugar vejo as paredes brancas, sim, estão cobertas pela neve. Dissolve, acompanhando a cadência da orquestra, seguindo o murmúrio do vento, dança o dançarino das montanhas de gelo. O lobo enfurece. O ar frio envolve o rosto e abraça o corpo. O frio é branco. Em pé respiro o ar solene e envolvente da manhã gelada, da boca desprende-se um vapor quente e colorido do fôlego da vida. São cores e cores. Palavras e palavras. Sinuoso é o olhar aquecido na noite ao pé da lareira. Na falta está a fratura, o vazio preenchido por memórias, a crisálida está no ponto exato de romper…é só re-começar! Ah! Que saudade desse exato momento. Ah esse tempo de dar tempo ao tempo!

Pintura de Henrique Mendonça Alves Vieira

São dois tempos em um olhar, vejo a noite, sinto o dia. A dualidade é solene e pausa o pensamento. Como definir o indefinível. As cores brincam durante o dia, e à noite, salpicam o céu em uma brilhante chuva de entrelinhas e estrelinhas prateadas. O lobo deixa o seu lugar de aconchego. O uivo atravessa o espaço e o tempo como um espelho quebrado. Convexo. O reflexo do grito está cravado na noite escura como um corpo cheio de estilhaços. O vórtice une o côncavo ao convexo. O lobo olha novamente. Não há tempo, a noite engole o escuro e assim vomita o dia. Existem milhões de entrelinhas frenéticas para nadar no jorro do ontem. Só sobrevive ao charco do lodo quem ouve as paredes do quarto. Só sobrevive à noite escura aquele que tem a presença em si e não tem medo do escuro da noite, da sua noite escura. Inverno! A coragem mora dentro do grito quando este atinge como relâmpago a alma inquieta. Dói, mas a experiência faz o milagre acontecer. O telhado da cabana é vermelho, eu vejo e sinto e ultrapasso o tempo/espaço. O lobo, agora soberano, olha para trás e vê o brilho das árvores: a dourada como tempo no tempo e a vermelha como a vida a correr em suas veias. Ele olha mais uma vez a divisão entre as cores e sorri. Sorri como nunca, sorri pela delicadeza da hora. Neste instante sublime o vento desce do seu repouso e deixa cair pelo caminho rastros das cores do dia, dia esse em que o lobo, soberano, descobriu a beleza de olhar para o seu próprio abismo e ele o olhar de volta. Já não há medo, nem dor, nem anestesia. Nesse dia, brilha em si a coragem de estar-aí. Da poltrona verde matte, coberta com uma manta azul mostarda, olho a pintura feita por um artista em dias cobertos de neve. Vejo a liberdade alcançada pela coragem de desenhar a própria angústia. Ainda estou a olhar os quadros na parede do quarto. Quarto habitado pelo perigo do vírus que consome as cidades! A nudez dos dias, às vezes, enlouquece. Danço no devaneio das noites povoadas por abismos. Vislumbro o tempo. Neste instante as estrelas brilham. Há um tempo dentro do tempo.  A noite e o dia encontram-se no limiar do amanhã. Só resta o gesto!

…e a rosa é vermelha,

…e chove cores no mar!

Márcia Mendonça Alves Vieira é professora da Língua Portuguesa e Literatura formada pela UFSC, e escritora, poeta, bordadeira e mãe. Publicou em parceria com professora Salma Ferraz e Patrícia Leonor Martins Dicionário Dos Personagens da Autora Paulína Chiziane (Editora Todas as Musas, 2019). Participou do e-book Expressões de Horror (escritos sobre o horror contemporâneo (UFSC, 2018) e das coletâneas de contos Histórias do Isolamento (Editora Todas as Musas, 2020) e Histórias do Carnaval (Editora Todas as Musas, 2021). Ministra a oficina Experimentando o Olhar que Escuta e organizou varais literários entre 2014 e 2017. Escreve poemas no Facebook como um laboratório experimental para com a linguagem. Foto: Arquivo Pessoal.

Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.

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