Eu vim à Aracataca para encontrar José Arcádio Buendía sentado à sombra de alguma árvore. Vim perguntar-lhe sobre Prudêncio Aguilar, o fantasma que o motivou a fundar Macondo, mítica cidade de Cem Anos de Solidão inspirada nesse poeirento povoado, e sobre os tantos outros não-vivos que de alguma forma preencheram a solidão da estirpe dos Buendía. Essa família condenada a ter somente uma chance sobre a terra é como uma metáfora para a gênese da América Latina, continente de ilusões falidas e movido pela fé.
Encontrei aqui muitos outros fantasmas: bruxas que se transformam em patos, a mulher de branco que na Semana Santa vai chorar sentada num balanço, o cão agourento do tamanho de um novilho e olhos vermelhos que importuna os vizinhos da Calle Quatro depois da meia-noite. Como se a realidade fosse uma cópia da ficção, e não o contrário.
Se comparado ao tempo da meninice de Gabo, as assombrações de Aracataca se modernizaram. Em vez de cavalos sem cabeça e outros espectros do além, como os que os índios Guajira que moravam na casa dos avós contavam ao autor quando ele era ainda um menino, agora espíritos amaldiçoam os infelizes que passam de moto pela estrada, montam em suas garupas e, deus queira que não, fazem o azarado condutor se esborrachar no chão.
— Oiê — me cutuca Tereza Martínez Campos, 48 anos. Limpa as bolhas de suor no buço, senta na calçada ao lado de uma mangueira com as pernas abertas e aponta o braço para indicar a direção de Somalia, a finca de onde sai o barulhento cavalo sem cabeça.
— De lá ele passeia pelo barrio Banga, só para atormentar, depois cruza o rio e desaparece. Pois quem diz que é mentira é que é o mentiroso, eu já escutei o estalo das ferraduras contra o chão — garante.
Aracataca tem um ar parado. Faz tanto calor que entregar-se à preguiça e a matar formigas inconvenientes parecem as únicas opções para passar as intermináveis horas da tarde. Até as mangas têm preguiça de desprender-se dos galhos. As casas são tão desbotadas pelo sol e as árvores tão velhas, que a cidade parece mesmo destinada a ser assombrada. Os cachorros são os únicos confortáveis num eterno estado de prostração.
Assim como a imaginada Macondo, onde tantos mortos infelizes foram buscar consolo da solidão depois da tumba, Aracataca tem seus próprios fantasmas. Moradores contemporâneos de García Márquez contam que no tempo que ele era ainda Gabito, existiam mais bruxas do que hoje. Ninguém discorda que elas ainda existem, entretanto.
Perto de Remédios, a Bella, monumento em homenagem à personagem que ascendeu aos céus na imaginada Macondo, vive o filho de um imigrante italiano, Carmelo Morelli di Lahoz, 73 anos. Ele tinha nove anos quando uma bruxa amarrou os pés do seu amigo de travessuras, na fazenda que seu pai tinha no outro lado do trilho do trem. A dissimulada se transformou em pato e depois ninguém mais a viu. O tio octogenário de Carmelo, Alberto Di Lahoz, que conhecia muito bem Gabo e toda família, confirmou que as danadas até hoje se transformam em animais para ninguém reconhecê-las.
— Elas agora aparecem pouco porque as pessoas perderam o medo — opina.
Mas não bastassem as bruxas que ainda aprontam e amarram cadarços de tênis, ou os gigantes cachorros pretos, o que tem preocupado os cataqueros é a maldição cigana na rodovia que liga Aracataca à Fundação, povoado distante 12 km.
— Senti que alguém montou na garupa da minha moto e tentou fazer com que eu perdesse o controle. Agi rápido. Empurrei a moto para estrada e joguei meu corpo para o mato — conta Oscar Niño, 37 anos.
Pode ser que o calor em Aracataca cause alucinações, mas não era de calor que o dono da mercearia da Calle Quatro sentia ao lembrar-se daquela noite, quando viajava sozinho até o povoado vizinho. Pois exatamente na mesma curva, mais de uma dezena de pessoas morreu em acidentes com motocicleta.
— Aí, perto dessa curva, existia um circo cigano e um dia todos os integrantes morreram. A única velha que se salvou amaldiçoou o lugar — diz Niño, convicto de que não passa sozinho pela estrada nunca mais.
Se eu não podia crer no que ouvia, pois que visse com meus próprios olhos. Niño, um homem corpulento e com bochechas vermelhas de sol, se arriscou a voltar lá, com duas pessoas na garupa (quase desconfiei que nos fez equilibrar-nos em três na moto para que a velha cigana não voltasse a importuná-lo), para mostrar onde tudo aconteceu. A polícia, que conhece bem as peripécias dos mortos de Aracataca, nos acompanhou no percurso e foi a agente policial de plantão quem confirmou:
— Muita gente morreu em acidentes de carro exatamente por aqui.
Nessa mesma noite quente e estrelada de abril, alguns moradores do povoado, desacostumados a entretenimentos, aplaudiam entusiasmadas ao final da exibição de um filme sobre a morte. Milagre em Roma, baseado na obra de García Márquez e exibido num telão ao lado da igreja, conta a história de uma menina que morre e, 12 anos depois, durante a exumação do corpo, se descobre que não estava morta. Nem viva.
As crianças cataqueras assistiram ao longa-metragem com mais atenção que a maioria dos adultos, que travavam uma briga pessoal contra a lombeira do calor e do sono. Os pequenos estavam tão à vontade com a menina morta-viva do telão que ao final, quando as vi reunidas, senti um arrepio e uma pequena dúvida se eu mesma não estava diante de fantasmas de crianças.
Aí lembrei que um velho na rua me disse: fantasmas não têm pés. E que caso sentisse medo, poderia me proteger com uma mandinga muito simples:
— Antes de dormir lembre-se de fazer um desenho de cruz com os teus sapatos e os deixa perto da porta do quarto.
Fantasmas não-inventados
A literatura de Gabo está povoada de fantasmas que ele não inventou, mas que assombraram a cidade onde nasceu e o acompanharam por meio das memórias ancestrais e do misticismo próprio da identidade cultural do Caribe colombiano.
A casa dos seus avós em Aracataca, por exemplo, é descrita por ele em Viver para Contar como sendo grande, antiga e com inumeráveis quartos onde suspiravam às vezes os mortos. Embora fosse um lar de espanhóis, o Prêmio Nobel vivia mais no mundo dos índios guajiros, de quem ouvia histórias e superstições. Sua avó Tranquilina, ele conta, que provinha de La Guajira, território entre o Caribe colombiano e venezuelano ocupado pelos índios wayuu (ou guajiros), não via fronteiras muito definidas entre os mortos e os vivos.
Os ecos desse misticismo, representada na imaginada Macondo, estão por toda parte em Aracataca. A estátua prestes a levantar vôo de Remédios, a Bela, por exemplo, coincide com a expressão guajira “se voló”, utilizada quando uma mulher foge com o namorado.
Assim como a casa dos Buendía era habitada por seres que ressuscitavam e voltavam à rotina como fantasmas — Prudencio Aguilar, o cigano Melquíades, o patriarca José Arcadio Buendía, a bisavó de Fernanda del Carpio, as aparições do Judeu Errante, que ao passar por Macondo provocou um calor tão intenso que “os pássaro furavam o mosquiteiro das janelas para morrerem nos quartos”— o lugar onde Gabo passou os primeiros anos de vida também foi habitada pelos espíritos do além.
No livro Cheiro de Goiaba, Gabo conta que a casa vizinha a que morava em Aracataca pertencia a um defunto cujo fantasma ainda perambulava por ela e que ele inclusive chegou a vê-lo: “um dia, a pleno sol, passei pela casa vizinha perseguindo um coelho e tratei de alcançá-lo no banheiro, onde estava escondido. Empurrei a porta, mas em vez do coelho vi um homem agachado em uma latrina, com o ar de tristeza pensativo que todos têm em tais circunstâncias. O reconheci de imediato, não só por causa das mangas amarradas até os cotovelos, mas pelos seus dentes bonitos que iluminaram a penumbra.”
— Gabo era muito pragmático, mas era também supersticioso — conta o amigo de Gabo Jaime Abello Banfi, diretor geral e cofundador da Fundação Gabriel García Márquez para o Novo Periodismo Iberoamericano (FNPI).
— Ele acreditava no que os outros acreditavam. Gabo rastreia o patrimônio popular. Toca nos medos, aqueles que acometem as crianças e que operam no nível do inconsciente. Ele crê na presença da morte na vida, essa consciência de morte já impregnada desde o pecado original — acrescenta o jornalista e escritor Daniel Samper Pizano, também amigo pessoal de García Márquez.
Hoje, a casa onde nasceu o escritor é a única não desbotada de Aracataca. Nos quartos onde os mortos da família suspiravam, os objetos de então são peças de museu. Na árvore onde imaginei encontrar José Arcádio Buendía havia borboletas amarelas, e tive a impressão de que as almas e assombrações de outrora encontraram um lugar de paz na imortalidade da arte de Gabo.
Tampouco encontrei o fantasma de Prudêncio Aguilar vagando pela cidade. Parece-me que Macondo é que é o espectro que ronda Aracataca. O que de fato encontrei foi uma reciprocidade entre as ilusões e credulidade dessa região com as do lugar de onde venho, o Brasil.
São lugares que compartilham desse mesmo continente latino-americano, reinventado quando Colombo chegou ao acaso pensando ter encontrado a Índia, e cuja história está repleta de mortes em nome da civilização, de crenças pisoteadas e refeitas, revoluções, golpes e a solidão da desigualdade social. Reconheci aqui a mesma fé que já conhecia no Brasil, e que de alguma forma alenta e explica as barbaridades da corrupção que quiçá as bruxas, tão maldosas, teriam coragem de fazer.