nasci no berço da fiação
Por Maiara Knihs
nasci no berço da fiação.
do barulho ensurdecedor das conicaleiras e retorcedeiras herdei o meu cultivo de silêncios. alimentar as máquinas têxteis, calejar os dedos arrebentando a linha, o cheiro do fio cru. me constituí respirando o pó do algodão. o acúmulo do pó é belo. o chão da fábrica fica parecendo o céu. qualquer coisa das nuvens. mas é seco não é molhado.
quentura. o eternit baixo no verão fazia muita coisa do ardume. o suor colava o pó do fio no corpo todo. escorria um fio d’água. muitos fios. pingavam o medo e o risco constante do fogo infernal. material altamente inflamável pendurado no teto como teia. é proibido muito mais que fumar. a cidade dos tecidos e eu, filhas dos operários das tecelagens, enroladas nas repetidas tramas, repetidas.
o relógio grande da fábrica briga faz birra para?
a hora não passa. secura.
se girar a linha pro lado oposto da torção, aparecem os fios. esse é meu trabalho, brinco. do fazer avesso. pegar as tramas e fazer linhas, pegar as linhas e fazer fios, pegar os fios e fazer algodão. como penélope, eu sei um fazer de esperar a hora de ir embora.
relógio grande, relógio grande da fábrica,
te desafio o saber do fio
o fio como o rio me carrega porque a língua do fio é torrencial. entro nesse nilo frágil e o maior do mundo. no tempo da fábrica desfiar também é um jeito de tecer. e todo operário guarda na mão esse saber.
com as mãos trabalho o fio como quem faz ninho. a urdidura é feita do cordão umbilical. o tecido pronto, carne que se tranforma no parto. o saber do hilo é feminino. ex-nihilo, nada. o fio vem antes vem durante vem depois.
Maiara Knihs nasceu em Brusque-SC, 1987. É mãe, escritora, mestra em literaturas pela UFSC (2014). Atualmente pesquisa o tema do leite e das tetas na produção artística de mulheres latino-americanas em seu doutorado em Harvard. Em 2020, lançou seu primeiro livro solo – ninharia – sobre a experiência da amamentação e dos desmames.
Foto: Maiara Knihs. Crédito: Jorge Minella
Próxima Parada: Cris Vazquez
Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.