Meu mundo é limitado, embora ilimitado. Minha existência nesse mundo quase não sai do esôfago, geralmente não passa dos tecidos epiteliais. Parece esquisito demais para o mundo espetacular dos extrovertidos, mas sei que os que vivem mais no mundo interior, dentro dos seus silêncios, sabem do que falo. Dentro desse mundo meu, passei o ano inteiro de dois mil e dezessete carregando um poema: “Abismo voador”, de Murilo Mendes, do seu livro “As metamorfoses”, escrito entre 1938 e 1941 e publicado em 1944.
A gente vê quem anda por aí com uma bíblia, com livro emprestado da biblioteca, provas pra corrigir, cãozinho pra passear, uma leitura transitória, todos sempre com seus smartphones, ou com as compras do mês, mas não se pode ver com que pensamentos as pessoas andam, muito menos se andam carregando um poema. Eu ia desatenta como sempre, com esse “Abismo voador” debaixo do braço, pra cima e pra baixo, a todo lugar.
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“Cordélia semeia pés de nuvem…”, diz. Por isso resolvi contar. Falava com Cordélia e perguntava se os pés de nuvem tinham brotado, com que fertilizante nutria as folhas das nuvenzinhas, se também transformavam o dióxido de carbono em oxigênio, de que cor era a clorofila. Não acreditava que alguém colhia miosótis e gramofones semeando pés de nuvens. Gramofones sim, mas miosótis não. E se sim para os gramofones, que pólen se espalhava pelo vento, se também se semeavam sozinhos os gramofones. Mas miosótis eu não acreditava. Era mais fácil que colhesse o nome popular do miosótis. Para mim, Cordélia colhia “não-me-esqueças”.
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“Que calma no mapa-múndi”: eu espreitava se a cartografia não teria sido embebida em chá de camomila ou se tinha caído totalmente de cara no ansiolítico, pensava que a segunda opção tinha mais sentido, porque via o sucesso da indústria farmacêutica. Aí que a intervenção química não era feita só na existência das pessoas anestesiadas que eu encontrava, em mim, mas também no atlas, na geografia, na terra.
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O voo do abismo se chocava muitas vezes contra a minha cara. “Estamos vestidos de alfabeto, / Não sabemos nosso nome”. Naquele ano de 2017 o abismo era uma atmosfera, era eu que tinha um ciclone nos meus braços, era eu que não sabia escrever com o alfabeto que vesti, era eu que não sabia o meu nome, porque nunca fui do meu nome, mas no mundo espetacular do sucesso era a um nome que precisava pertencer, um nome deveria ser meu dono. Meu sangue vira coleção de tufões, porque não caibo no que me chamam, não sou a grafia que assino. Quem sabe eu tenha muitos nomes, quem sabe ainda precise inventar uma grafia para mim.
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Mas eram os “cavalos brancos vermelhos” que tingiam a atmosfera abismal que respirei. Mastigavam os dias e não só o mundo. Mastigavam a guilhotina na sombra da terra. Eu ouvia os fantasmas galoparem, sabia que voltavam, porque nunca tinham ido. E pensei que eles sempre voltam porque ainda não aprendemos a dissipá-los. Porque é no galope dos fantasmas que voa o abismo – não sobre nossas cabeças, mas tão profundamente que continuam a atravessar paredes e inovam tentando perpassar pelos alvéolos de nossos pulmões.
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Mas isso foi em dois mil e dezessete. Em 2020, o fantasma é um vírus que flui por perdigotos, nos espirros, no fluxo de aerossol que espalha as partículas sólidas das nossas palavras. Os cavalos são mais trevosos e fantasmas também foram preenchidos de carne. Eles têm cara, nome, cargo político, canal no youtube, perfil no instagram, conta no facebook, frases feitas no twitter, coleção de cyberbulling, fábrica de fake news, egoísmo e uma ambição maior que a própria vida, que a própria existência, que o mundo. O fantasma é de ferro, tem garras, derruba florestas, mata formas de vida, envenena a terra, o fantasma é de nióbio, de hidroxicloroquina, de ivermectina, de contêineres-frigoríficos, de sacos de cadáver. Mas, ainda que agora possa ser visto, esse fantasma de carne e encarnado ainda se alimenta do imaterial, da inclusão da mentira na narrativa histórica de um tempo, da normalização da imbecilidade, do culto à superficialidade e à generalização que fortalece a demagogia, do ataque ao conhecimento, aos afetos, ao amor. Se alimenta assim, gota a gota com o ódio que produz contra si e contra os outros. E sabe se retroalimentar. “Vida contra a vida”, diz o poema de Murilo Mendes.
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Fizemos casa no abismo voador. Mas é com Cordélia que estamos e não com os fantasmas. Nós que plantamos, nos reconhecemos nos olhos, com o ciclone nos nossos braços, ainda semeamos as nuvens. Sabemos de que água as nuvens que plantamos precisam para chover em nós. Sabemos que água nos mata a sede. Gota a gota, gramofones e miosótis que colhemos, também nossos pés de nuvens estão em todos os canais digitais. E, mesmo numa atmosfera feita de abismo, o tempo muda. O tempo é cíclico. E nosso pólen é alérgico aos intolerantes e ao autoritarismo. Seguimos com buquês bonitos de “não-me-esqueças”. Vai passar.
Patrícia Galelli é escritora, jornalista e artista-pesquisadora. Publicou os livros Carne falsa (Editora da Casa, 2013), Cabeça de José (Editora Nave, 2014), que recebeu o Prêmio Elisabete Anderle de Incentivo à Cultura em 2013, da Fundação Catarinense de Cultura, Gávea (selo Formas Breves/e-galáxia, 2014) e o livro de artista Um bicho que (Miríade Edições), com primeira edição em 2015 e segunda edição em 2016. Em 2020, lança primeiro livro para crianças, Gato-átomo (Editora Nave, selo Nave-nina). É mestre em Processos Artísticos Contemporâneos (Udesc). Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo, com pesquisa sobre a relação do jornalismo e da literatura na produção de crônicas. Foto: Ayrton Cruz