Próxima Parada: Marcio Markendorf

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O império milenar

Por Marcio Markendorf

Não nos é dado pressentir quando ou como – lição tardia e amarga. Eis o mistério do perigo político. Tudo estava em ordem e foi revirado inside out, com palavras de ordem. E algo monstruoso acedeu. Talvez essa mudança estivesse oculta dentro de nosso raio, subterrânea, o que parece pouco provável. O mais certo, conforme imaginamos, é que estivesse a centenas de quilômetros, para além daqui, no muro. O que parece improvável, agora que nos ferramos neste monturo. Assim é que se inocula o engano: o inimigo é outro, não tem nossa identidade, está fora da comunidade. Difícil mesmo foi observarmos, apáticos, o crescimento lento da autoridade, do mal estar, dos ovos eclodindo. Alguns desaparecem quando vieram, fizeram até parecer acidente. E cada vez mais foram se espraiando em nossas malhas viárias, devagar, gota a gota, como uma metástase, um contágio. Depois foram recolhendo nossas coisas, fechando nossas bocas, deixando rastros cada vez mais fundos de atrevimento, sem que nos opuséssemos. E, da noite para o dia, foi o que pareceu, houve um coup d’etat. Mais tarde, só foi recrudescendo, então este império. A primeira vez que vieram, faz tanto tempo, já não me recordo mais. Foi brutal, um choque com as tropas de choque. Agora é isto: salve, rainha, que faz tudo acontecer. Salve, rainha, que nos dá o que comer, pois nos manda buscar. Salve, rainha, que nos deixa vivos se produzimos bem-estar. Salve, rainha, o estado é teu, a glória é tua. O que nos diz é lei. Faço, então, apenas o que me cabe, cumpro meu serviço, saúdo as saúvas armadas dos túneis. Em breve chegará o inverno e ainda menos nos será concedido. Virão as longas noites de vigília, o toque de recolher, a escuridão dos depósitos subterrâneos. As criptas estarão cheias de tudo o que não nos diz respeito. Quando já estivermos muito fracos, a rainha ordenará a distribuição dos alimentos, a fila da sopa para nós. É muita angústia este cenário sem banjo, sem manto, sem alegria. Quando vivíamos lá fora, era só cantoria. Então nossa liberdade, nossa humildade, nossa força de trabalho, sem demora, foi cooptada. Já se passaram muitos invernos e nenhum de nós bateu na porta outra vez. Possível que estejamos todos aqui, prisioneiros do olho milenar. Oh, rainha, salve salve.

Marcio Markendorf é professor e escritor. É autor de “Soy loca, Lorca, feito um chien no chão” (Urutau, 2019) e, em parceria com Adriano Salvi, de “Microcontando” (Caiaponte Edições, 2019), projeto de micronarrativas financiado pela  Lei de Incentivo à Cultura de Balneário Camboriú. Foto: Arquivo pessoal

Próxima Parada: Priscila Lopes

Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.


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