para Raquel Stolf
o ruído fino da água e logo são outros sujeitos as bolhas. as que passaram sempre são novas bolhas. a onda leva à boca do fundo do mar o copo de água que o mar bebe. no fundo marinho, todas as previsões meteorológicas ocorrem ao mesmo tempo, deixam de ser previsões. ou acontecem no mesmo instante em que são previstas. a tempestade passa ao lado do furacão. um afogamento da própria água ressoa as bolhas como retratos solitários de caminho sem trajetória, na direção labiríntica. o paradoxo é engenheiro de aspas sobre os silêncios: onde não há nada, há o mar e as suas constelações em feixes de correnteza. o mar pensa como o silêncio que prenuncia o acaso, um ruído fino de água entre as aspas.
(aterrissagem)
as ondas voam. mecanismo orgânico, porém, a sustentação deste voo se dá de fora para dentro – a superfície introjeta a decolagem no fundo. de fora se vê apenas a última onda: a aterrissagem, que é formada depois que uma onda mais apressada sai pisando forte sobre ondas simples e outras ondinhas. mas da pista de decolagem do fundo, nota-se outra explicação: as ondas pegam velocidade sem precisar ligar os motores, elas dão dez deslizadas para trás para engatarem na velocidade do vento e, então, se despem da areia, das algas, das pedras (ou carregam as aventureiras: grãos de areia, algas e pedras empolgadas).
as ondas são os aviões do fundo do mar.
(nanofone)
o que aconteceria se o mar mergulhasse um nanofone dentro do hidrofone que lhe capta os silêncios? mapeamento acústico e diagnóstico clínico: nanotransdutor – micro-dispositivo que converte a energia do cérebro do hidrofone em sinais eletroacústicos ao alcance auditivo do mar. bem mais que 20Hz, obviamente. há que se definir a morfologia do micro-transdutor e, depois de construir, fazer testes de sensibilidade. calibração. deve ser muito pequenininho:
um hidrofone no mar é como um astronauta no espaço.
(aguaceiro)
a chuva fina, um tal ruído, também bate nas algas. e pingam os pedregulhos das calhas dos fundinhos. às vezes é nada, às vezes é um aguaceiro só, que nem se vê peixe. o oceano inteiro cabe num silêncio. mas um silêncio de costa é solitário demais, tão perdido do oceano – sem ter com quem falar.
para escutar as áreas costeiras é preciso limpar o lodo dos ouvidos.
(lista quase completa)
a respiração do mar. os batimentos cardíacos do mar. a pressão arterial do mar. os pulmões do mar. os movimentos peristálticos do mar. são todos ouvidos. entre as aspas: o mar engole o copo de água com tanta sede. o mar aloja com a língua uma bolha nova. o mar empurra a mobília da sua casa pela vigésima vez. o mar varre o pátio logo depois. o mar grava o segredo dos peixes. o mar exagera na fervura do chá de algas. o mar lava os cabelos em água corrente. o mar corre das sombras das faces dos homens. o mar faz carinho no ventre das encostas. quando toca as palafitas do trapiche, o mar se entristece. ouve-se o choro manso do mar quando se irrita. a aglutinação de seus desesperos também se nota. se o acaso se assemelha ao silêncio trespassado de seu íntimo, ao ouvir seu fundo também qualquer um escama em outro – e o pensamento se confunde entre os ruídos finos, satélites lentos de sentido entre as aspas.
Escrevi esse texto a partir do trabalho “mar paradoxo” (2013-2016), de Raquel Stolf, que inclui vídeos, áudios e material impresso. Também fez parte do conjunto de textos para a exposição “RIVER FILM / pedra-fantasma / mar paradoxo”, de Helder Martinovsky e Raquel Stolf, no Museu da Imagem e do Som de Santa Catarina (MIS-SC), de julho a setembro de 2017. Eu volto aos silêncios todos que Raquel colheu em “mar paradoxo” muitas vezes ao ano. Ouvir o fundo do mar é sempre um lugar para mim. Um lugar onde sei lidar com o que não consigo dizer, um lugar que se faz das imagens que ouço, do que vejo nos sons – um certo acolhimento.
Mais sobre o trabalho “mar paradoxo”, de Raquel Stolf, aqui.