Por Mariana Thomé e Romeu Martins
As produções brasileiras nunca estiveram tão em evidência no universo dos quadrinhos. Na última edição da Comic Con Floripa, realizada no começo de junho, a novidade foi a quantidade de pesquisas, teses e dissertações que viraram quadrinhos expostos na Artist Alley.
Mais de 100 artistas mostraram seus trabalhos, entre eles os premiados Marcelo D’Salete e Danilo Beyruth. Durante o evento eles conversaram com a cineasta Mariana Thomé e com o jornalista Romeu Martins sobre a crescente a valorização das HQ’s inspiradas em estudos históricos do Brasil.
D’Salete – HQ e a luta negra contra a escravidão
Além de quadrinista, Marcelo D’Salete é professor de Artes Visuais e mestre em História da Arte pela USP. Após 11 anos estudando a história afro-brasileira, lançou duas graphic novels que foram premiadas em 2018: Cumbe ganhou o Eisner (considerado o “Oscar das HQ’s”) e Angola Janga o Jabuti. Ambas enriqueceram o mundo dos quadrinhos e as referências históricas ao abordar a luta negra durante a escravidão colonial.
Mariana Thomé: Principalmente em Cumbe, tem essa questão da liberdade ser conquistada. Porque se tem aquela ideia de que os negros foram libertados da escravidão e foi um mar de rosas. Pelo menos a nossa interpretação do quadrinho foi que era uma batalha diária pela liberdade e que vai até os dias de hoje. Isso foi uma questão que chegou em ti nesses 10 anos de estudo ou foi uma epifania?
Marcelo D’Salete: Foi algo construído. Fiz um curso na USP, sobre consciência negra, falando da história do Brasil a partir de uma perspectiva negra. Ali tive contato com vários textos e um deles que me marcou muito foi de Palmares. Aí eu vi que ali tinha uma história imensa que poderia ser narrada em quadrinhos. Já foi narrada antes, inclusive, temos um quadrinho sobre Palmares, de Clovis Moura e Alvares Moya. Mas é um trabalho ainda pequeno em relação a quantidade de histórias que Palmares pode render… Meu objetivo foi detalhar essa história.
É um objetivo muito forte de tentar contar isso de um modo que não fosse apenas vendo essa população, esse grupo como vítimas. Pra mim, era muito importante pensar nesse grupo enquanto protagonistas, mesmo dentro do sistema da escravidão. Acho que isso é essencial.
Quando você torna essas pessoas protagonistas, mesmo cerceadas pelo sistema, mas como que eles enfrentaram isso e negociaram, criando condições de ter mais autonomia nesse ambiente. E uma autonomia que durou muito tempo. Era um conjunto de pessoas. Mais de dez mil pessoas, quinze mil pessoas, extremamente articuladas e que conseguiram resistir por cerca de 120 anos. Fundaram um espaço onde eles tinham extrema autonomia sobre sua vida, seu espaço, sobre a forma de lidar com a terra, com o trabalho.
Quatro/cinco gerações de pessoas que não passaram pela escravidão, dentro das vilas. Isso pra mim já é uma grande vitória. Então, não tem como você dizer “ah, foi um quilombo, mas eles foram derrotados e acabou”. Como que a gente reconta isso? Como que a gente pode imaginar Palmares hoje, pela ficção também.
Beyrut – O faroeste no Cangaço e máfia japonesa na Liberdade: da realidade à ficção
Especialista na criação de anti-heróis, Danilo Beyruth é publicitário, ilustrador e quadrinista. Surgiu com Necronauta, personagem responsável em conduzir as almas dos mortos para o além e em 2010 publicou Bando de Dois, transformando a caatinga nordestina em um faroeste americano. A obra levou três prêmios HQ Mix: Melhor Desenhista Nacional, Melhor Roteirista Nacional e Melhor Edição Especial Nacional. Beyruth também ficou conhecido por seus trabalhos na Marvel (Guardiões da Galáxia, Motoqueiro Fantasma) e pela reformulação do personagem Astronauta, de Maurício de Souza. Seu mais recente trabalho Samurai-Shirô mostra lutas sangrentas de samurais pelas ruas de São Paulo nos dias de hoje.
Romeu Martins: Eu acompanho o fandom de ficção científica brasileira há 10, 11 anos. E é raríssimo o brasileiro estar em linha com o que é produzido lá fora. Agora, o brasileiro conseguir produzir alguma coisa antes…
Danilo Beyruth: Não é que estou escrevendo um material histórico. Você na Liberdade não vai topar com Yakuzas lutando e atirando, nem nada. Mas você tem que trazer essa coisa de fantasia. Daí depois se a pessoa se interessa pela história da colônia japonesa no Brasil, se interessa em como o conflito de Canudos desencadeou o banditismo no Cangaço, aí é pessoal. E eu sempre levo a ressalva de que eu não me levo tão a sério como artista, de falar que sou artista, eu faço entretenimento.
Então, vamos fazer um entretenimento, vamos trazer as pessoas, vamos fazer o cinema, o quadrinho que a gente consome lá fora, vamos fazer aqui. E é chato pra caramba esse shakespearianismo das coisas, que é você pegar uma coisa e dar uma nota pra elas. Não dá pra simplificar, fazendo uma comédia morna, que é um casal classe média alta na zona não-sei-o-quê no Rio de Janeiro… As pessoas querem ver os grandes conflitos. Querem ver essa coisa do personagem convicto. Isso tem um poder absurdo, porque o vilão convicto é mais legal do que o herói.
O Yakuza é um vilão convicto, o cangaceiro é um vilão convicto. E ele vira um herói em certas situações. Paralelo da Yakuza com samurai, cangaceiro com Robin Hood, e ao mesmo tempo é um pirata, um pistoleiro. Você meio que está vivendo uma vida alternativa ali. Você tá acompanhando aquela história…
Mas vai além do voyeur. Existe um certo momento de viver aqueles sentimentos. Tem o voyeurismo, mas tem também a simulação dos sentimentos. Quer entender os motivos… É isso que encanta no anti-heróis. Que situação que faria eu chegar a essa extremo. E esse universo psicológico do herói. E é perigoso você limitar a fantasia das pessoas se não a fantasia faz a sua realidade.