Edward Hopper em tempos de pandemia: um ensaio sobre solidão e redenção

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Por Fábio Lopes da Silva *

Dizer que o artista plástico norte-americano Edward Hopper (1882-1967) é o pintor da solidão é repetir um bordão que, não obstante ser certamente verdadeiro, pouco acrescenta ao entendimento da força de sua obra. De fato, homens e mulheres melancolicamente dobrados sobre si mesmos abundam nos quadros que ele assinou e são o sinal mais visível e inequívoco de que a solidão está realmente no coração de seu projeto estético. Contudo, cabe perceber que, embora sejam o que costuma inicialmente chamar a atenção, os personagens concebidos pelo autor constituem apenas uma parte – crucial, não há dúvida – do drama que ele articula. Passado o impacto inicial que a presença humana faz eclodir, começamos a nos dar conta do ambiente que a cerca. E é precisamente aí – na consideração desse entorno – que a verdadeira incandescência da arte de Edward Hopper se revela. É pelo menos esse o argumento que tentarei brevemente desenvolver no que se segue.

Onde se passam as cenas construídas por Hopper? Em lugares invariavelmente prosaicos: escritórios, quartos de hotel, bares, cafés, postos de gasolina, beiras de estrada, ruas comerciais etc. Até aí, tudo bem: estamos em terreno mapeado, exaustivamente conhecido. Só que o pintor sempre dá um jeito de perturbar drástica e irremediavelmente o que poderia haver de reconfortante nessa sensação de dèjá vu. Tome-se, por exemplo, Office in a smallcity (1953).O par de janelas enormes, aparentemente sem uma lâmina de vidro a proteger o interior do edifício, é aqui o dado a ser, antes de mais nada, destacado.

Outro elemento capaz de produzir estranhamento são os ângulos escolhidos por Hopper para a captura do que é retratado:o olhar que somos convidados a assumir muitas vezes se projeta de pontos de vista insólitos – de baixo para cima, de cima para baixo ou como se proviesse de um posto furtivo e indiscreto de observação. É o que se pode constatar em House of the Railroad (1925), Apartment Houses (1923), Office at night (1940) e Night Windows (1928), abaixo reproduzidos nesta ordem:

Houseof the Railroad (1925)
Houseof the Railroad (1925)
Apartment Houses(1923), dedward Hopper
Apartment Houses (1923), de Edward Hopper
Office at night(1940), de Edward Hopper
Office at night(1940)
Night Windows (1928), de Edward Hopper
Night Windows (1928)

Ocasiões há em que as soluções hopperianas para tirar o espectador da zona de conforto são ainda mais radicais. Penso particularmente em Rooms by the sea (1951), no qual, pela porta aberta de uma casa, vê-se que ela está assentada, não sobre terra firme, mas, absurdamente, sobre o mar:

Rooms by the sea (1951)

Qual o sentido dessas distorções e perturbações da realidade comum e dos modos habituais de apreendê-la? A resposta que se oferece como uma pechincha é o flerte com o psicanalismo e mesmo com o surrealismo, como se o que estivesse em jogo fosse um gesto capaz de aspirar o espectador para os desvãos e espirais em abismo do inconsciente, fazendo-o aderir a pulsões voyeuristas ou às paixões, luzes e sombras do que Freud chamava de Traumwerk, o trabalho do sonho, com sua inesgotável riqueza de significados. Minha aposta, no entanto, é radicalmente outra. O mar que sitia a casa em Rooms by the sea, assim como as janelas e ângulos hopperianos (ou, para citar mais um exemplo, as estradas que se perdem no horizonte longínquo), não visam primordialmente cutucar a psicologia profunda dos indivíduos ou construir algo como imagens oníricas polissêmicas. São, antes, variações de um único e mesmo tema: metonímias ou metáforas da imensidão do mundo; modos diversos de mostrar que, queiramos ou não, estamos sempre lançados na tridimensionalidade do espaço, na possibilidade da aventura ou, para usar uma palavra do momento, do contágio. São formas estupendamente sucintas de representar, no pequeno retângulo do quadro, o fato de que, apesar das aparências, o personagem solitário não vive em uma bolha ou concha fechada sobre si mesma, mas na vastidão do mundo, involucrado e, no limite, penetrado e saturado pelo que existe ao redor. A casca que o aliena e protege é porosa. A solidão é sempre um fenômeno social, ecológico, espacial, compartilhado.

Reconsiderem-se, a esse respeito, cada um dos quadros acima mencionados. Em Office in a small city, as já citadas janelas imensas, a meu juízo, desempenham precisamente essa função de significar a presença do mundo, a vulnerabilidade do personagem ao que lhe é externo, mas também, dialeticamente, uma saída de emergência, um ponto de fuga, uma chance – nunca suficientemente distante de dar com os burros n’água – de exceder a si mesmo.

Nos casos de House of the Railroad, Apartment Houses, Office at night e Night Windows, são os supradestacados pontos de vista invulgares que apontam para essa mesma porosidade da solidão, essa mesma dialética entre vulnerabilidade e promessa, fragilidade e futuro. O mundo – encarnado desta feita em olhares vindos de ângulos insuspeitados – chega ao centro dos quadros (mas também, paradoxalmente, se abre para esse centro) por flancos inauditos, imprevisíveis, aos quais não estamos normalmente atentos ou dos quais, não raras vezes, sequer temos consciência prévia de que são possíveis. A mirada que alcança o sujeito ou objeto observado o açambarca, mas, simultaneamente, inventa um caminho que, no limite, necessariamente pode ser refeito em direção contrária (Lacan, ao ser perguntado sobre qual a saída para nós, humanos, respondeu de pronto: a entrada).

Algo semelhante, suponho, é expresso pelo mar em Rooms by the sea. As águas que assediam a casa são exatamente aquilo que, por outro lado, descortina uma eventual rota de fuga, uma estrada capaz de levar para Deus sabe onde.

Em tempo (e à modo de abrupta conclusão): escrevi este pequeníssimo ensaio em um jato, impelido por um ímpeto irrefreável. Hopper me veio à mente neste estranho momento que estamos a viver. Chegou-me sob o signo da interpretação que aqui propus, cuja substância, registre-se, jamais tinha me ocorrido antes, apesar da antiga paixão pelo pintor. Foi na crise atual que tudo isso que acabei de tentar dizer entrou-me pela janela de casa. Sei – ou acho que sei – o porquê: não é, no fundo, a natureza incontornavelmente porosa de nossa solidão o que está em jogo agora? Sob o sol da pandemia e suas consequências, é esse estar sozinho e no vasto mundo o que certamente nos oprime, assim como é também isso a própria possibilidade de transcendência e redenção.

Florianópolis, 1º de maio de 2020.

Fábio Lopes da Silva é doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (1999), com pós-doutorado em Literatura Brasileira pela PUC-Rio (2009). Em 2019, participou de uma licença-capacitação na Yale University. Desde 1994 é professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde coordenou por quatro anos o Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSC. Foi Diretor-Executivo da EdUFSC entre 2013 e 2106. Experiência na área de Linguística, com atuação em linguística crítica, psicanálise e linguística, sociologia e filosofia da linguística.

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