Por Nathalie Heinich*
Como qualquer evento imprevisto, brutal e vital, a crise do coronavírus suscita sua parcela de retrocesso: epidemia de mentiras, teorias conspiratórias e boatos de todos os tipos e, claro, uma busca implacável por culpados — dos chineses à globalização, do neoliberalismo às mudanças climáticas, da incapacidade de previsão das autoridades sanitárias ao governo maquiavélico. Tantas táticas destinadas, provavelmente, a encontrar uma aparência de controle sobre o que nos escapa.
E o que nos escapa em primeiro lugar não é apenas o controle de nossa saúde futura, mas também, a partir de agora, o controle de nossa vida diária: em poucos dias foi-nos tirado — e por um período substancial de tempo — essa liberdade fundamental que consiste em poder nos deslocar como quisermos. Na memória recente, isso nunca tinha sido experimentado.
No entanto, apesar dos deslizes previsíveis (recusas de ordem pública, estratégias para contornar a proibição, crises de nervos), a situação não gera — pelo menos por enquanto — nem tumultos nem protestos em massa: os recalcitrantes permanecem em nível individual (e, às vezes, fazem seus reclames às autoridades). Pode-se, portanto, perguntar, o que torna, apesar de tudo, essa situação relativamente suportável. No entanto, a resposta a essa pergunta não se limita à existência desses dois recursos essenciais, que são, no nível técnico, a capacidade de nos conectar aos outros remotamente por intermédio de tecnologias de telecomunicação (a intensidade desses telelinks pode até levar a uma forma de excesso relacional) e, no âmbito moral, o sentimento embora reconfortante de que nós somos quase iguais diante da ameaça (o vírus não conhece as classes sociais); mesmo que afete mais as pessoas idosas e mesmo que, acima de tudo, as consequências do confinamento sejam tudo menos que igualitárias, dependendo das condições de vida.
Para além da manutenção de vínculos remotos e da relativa igualdade dos riscos à saúde, parece-me que a principal razão para aceitação global das medidas de confinamento reside no fato de que elas exigem nosso sentimento de responsabilidade. Porque nos requisitam — com justa razão — que nos comportemos como adultos, ou seja, que tenhamos consciência de que nossas ações podem ser benéficas ou prejudiciais para os outros.
Lembremo-nos: a primeira reação de muitos de nossos concidadãos foi interpretar medidas coercitivas como meios destinados a proteger sua saúde: origem de uma reação de revolta e rejeição, pois que direito o poder público teria de governar a minha vida? Em seguida, sendo jovem e não doente, não estou preocupado, estou? Além disso, eu não teria o direito de correr riscos por mim mesmo se eu quiser? Felizmente, a comunicação governamental colocou os pontos nos “is”: confinar-nos não apenas para proteger a nós mesmos, mas também para proteger os outros – seus entes queridos e os estranhos que atravessam a rua, todos os nossos concidadãos.
Em outras palavras: se você está confinado é porque você não está sozinho; e se você está isolado dos outros, é precisamente porque os outros existem e eles também dependem de você. O mesmo é verdade hoje não só para o confinamento, mas também para o uso de máscaras: se você tem que usar uma máscara não é somente para proteger a você, como se acreditou, também é para proteger os outros — e, portanto, também é para proteger a você mesmo.
E agora, graças a essa crise, a ideia de que não somos o alfa e o ômega de nossa própria vida foi introduzida na mente de muitos de nós; que, acima do interesse individual, há algo mais precioso, que se chama interesse geral, ou o bem comum; mas que a convivência dos dois não é necessariamente fácil de organizar quando nos encontramos divididos entre valores privados (nosso conforto, nossa necessidade de relações com parentes próximos, nosso desejo de ir passear, nossa liberdade) e os valores públicos sob os quais justificamos nossas ações (não agravemos a contaminação, não coloquemos em risco a saúde dos mais vulneráveis, não sobrecarreguemos o fardo dos cuidadores). Agora que o confinamento nos obriga a colocar nossos desejos de lado (afinal, é tão importante para mim encontrar rapidamente a pessoa que amo?) e projetar-nos no futuro (tudo isso só será por um tempo, e durará menos dependendo de como eu me submeto às orientações). Colocar os desejos à margem e projetar-se no futuro: é exatamente isso que ensinamos às crianças para ajudá-las a se tornarem adultas, ou melhor, civilizadas.
Teria dito Norbert Elias, nesse “processo de civilização dos costumes”, que as sociedades ocidentais se construíram educando os seres humanos com base na satisfação egoísta de seus desejos imediatos e a expressão bruta de suas necessidades corporais. E, sem dúvida, a isso ele teria acrescentado que, tomado de uma consciência coletiva da “interdependência” na qual a “sociedade dos indivíduos” se alimenta, também estamos testemunhando o declínio do homo clausus, essa ilusão espontânea de que o homem está fechado em si mesmo, definido anteriormente aos outros e independentemente deles.
Fim da ilusão da onipotência individual, fim da fantasia de que a liberdade das pessoas seria o objetivo final: trancados em nossas casas, somos capazes de meditar, finalmente, o significado e a importância da noção de interesse geral; perceber a necessidade imperiosa de preferir, tanto o liberalismo econômico (direita) quanto o libertário (esquerda), a concepção republicana de cidadania, que torna o bem comum superior à soma das liberdades individuais, e coloca-o acima delas, conectando-nos não só aos nossos entes queridos e aos nossos concidadãos, mas a todos os habitantes do nosso infeliz planeta.
Assim, depois de duas gerações embriagadas no culto do rei-criança e do “eu tenho o direito de me vestir como eu quiser”, o sonho da onipotência recua com todo o seu peso de ilusão corrosiva e fracassos: decididamente, há coisas mais importantes, e ainda mais excitantes, do que a satisfação dos desejos individuais. Há, pois, uma conexão entre nós, entre todos nós; confinados, sim, mas interdependentes, responsáveis, solidários e — apesar de tudo — orgulhosos disso.
Nathalie Heinich é socióloga francesa. Integra o Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), maior órgão público de pesquisa científica da França e uma das mais importantes instituições de pesquisa do mundo.
Tradução do original em francês por Nadja de Carvalho Lamas (professora do curso de Artes Visuais e do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade da Univille) e Fernando Cesar Sossai (professor do curso de História e do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade da Univille). Texto escrito e traduzido em abril de 2020.