Produções catarinenses cultivam militância e sinalizam o futuro incerto do cinema no Estado

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A arte é historicamente reconhecida como forma de resistência. Caso nos restrinjamos apenas ao cinema deste século, por exemplo, observaremos diferentes ideologias no cenário artístico e, até mesmo, documentários censurados em países totalitários. A arte é contestadora, inquisitiva e chega a população de uma forma simples e visual – isto pode incomodar. Se no Brasil, o processo de conflito do discurso cinematográfico é diferente, cenas como a de uma equipe de filmagem indicando um Golpe no país em um dos maiores festivais do Mundo se tornam icônicas. E, sim, provocadoras.

No Florianópolis Audiovisual Mercosul (FAM) realizado em 2018, a produção catarinense perseguiu essa máxima: a arte desafiadora, a que fomenta debate sobre o marginalizado, sobre o artista e, principalmente, sobre o cidadão comum.

— Tudo diz respeito ao planejamento e o tipo de ideia que você quer passar. A nossa era falar sobre arte como linguagem, de como figuras marginalizadas pela sociedade precisam criar um mundo próprio para se sentirem parte de uma comunidade —  aponta Paula Barbabela, que, junto com Marina Simões, retratou o mundo das drag queens para observar como a performance serve como ferramenta política, no documentário Berro (foto), exibido no FAM 2018.

Finalizado como projeto de conclusão de curso, Paula e Marina contaram com o próprio bolso para levar as histórias de BriseldaMoon, EmmeLe’mont e Suzaninha Richthofen para as telas catarinenses e serem adotadas pela curadoria do FAM. A projeção de futuro para as duas no cinema catarinense, no entanto, passa pela incógnita:

E… agora? Para onde?

Filmes versus audiovisual

Embora a resposta pareça cheia de possibilidades, com agências e produtoras se emaranhando entre web séries e novos projetos de filmagens, a realizadora Cintia Domit Bittar, sócia de uma das mais expressivas produtoras de SC, a Novelo Filmes, adverte que é preciso diferenciar quem faz filmes de quem trabalha profissionalmente com audiovisual.

— Claro que há pessoas filmando e fazendo seu jeito em tudo que é lugar, mas para quem trabalha profissionalmente no Estado está cada vez mais difícil. Produtoras estão fechando suas portas, profissionais qualificados estão saindo do Estado. Temos cursos superiores em Cinema, inclusive na UFSC, que formam pessoas sem perspectiva alguma de emprego. Por quê? Pois Santa Catarina vem na contramão da produção audiovisual brasileira, com gestões públicas esnobando quem trabalha aqui. O Governo já reconheceu o cinema como economicamente viável. O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) é o fundo mais eficiente do país. Mas a nossa política cultural retraiu. É menosprezada. Quando garantir uma produção audiovisual significa gerar cultura, fortalecer identidade e soberania nacional, gerar empregos, transformar a sociedade… — analisa.

Parceiro contumaz da Cintia, o diretor de fotografia Marx Vamerlatti descreve ainda que a grande maioria dos filmes que participou foi contemplado por editais – desde curtas à longas-metragens.

— Começamos a ver esse incentivo acontecendo mais amplamente a partir de 2002, porém, no decorrer dos anos, a Lei Anual não foi mais cumprida e isso impactou muito a produção, que ainda resiste graças a colaborações, financiamentos coletivos e parcerias — acrescenta.

Santa Catarina, hoje, dispõe de sindicatos específicos para trabalhadores do audiovisual de produção, os quais tabelam o mercado, entretanto.

— Ninguém vai impedir alguém de fazer um filme com cinco mil reais, mas considerar pagar uma equipe profissional com esse valor é uma ilusão. Situações independentes acabam sendo atípicas, geralmente voltadas para produções bem pequenas e sem compromissos profissionais — considerada a diretora Cintia Domit Bittar.

Cinema também é feito no interior

No FAM 2018, para se manter fiel ao maior exemplo de festival do Estado, o resultado da variedade do cinema catarinense foi evidenciado a não restrição ao trabalho audiovisual de Florianópolis. Cinema também é feito em Criciúma, Jaraguá do Sul, Balneário Camboriú, Itajaí e Palhoça. Ainda que o domínio desse ano tenha sido a ficção, com seis filmes, os quatro documentários seguiram à risca cultural de personagens incompletos, excluídos e desafiadores.

Severo Severino começa com um artista de teatro de revista falando que na infância ele não podia cantar ou apanhava. O protagonista afirma que as pessoas se incomodam com o diferente, com o estranho, tentando mirar no intermediário e no que ele representa.

Um dos diretores do filme, Marko Martins, ao refletir sobre o processo de filmar Severo, declarou:

— Como montador, eu acredito que a gente não finaliza um filme, a gente desiste dele. Sobretudo, em documentários. O resultado final é apenas o resultado possível. É o resultado das circunstâncias. E, veja bem, todo filme depende de contexto. Existe por ele. Um exemplo bom é que quando chegamos ao Morro do Pinto, no RJ, local em que Severo nasceu, tínhamos que lidar com o morro comandado pelo tráfico. Filmar lá foi… tenso.Vários soldados do tráfico exibindo fuzis e revólveres e nós, ali, acompanhando um homem andando como se tivesse nos anos 50. Por mais que se planeja, a prática sempre se sobressai.

Para Marko, o incentivo governamental para produzir permanece importante, ainda que quem quiser filmar, contará a sua história de algum jeito. A evolução precisa ser acompanhada, igualmente.

— Existe um abismo enorme entre artista e governo. Você vê essas secretarias culturais que falam de Boi de Mamão, enquanto o Cena 11 está fazendo espetáculos com raio-laser — complementa.

Enquanto as respostas para uma aproximação entre cultura e governo catarinense não podem ser totalmente compreendidas nos planos de ação dos candidatos ao Governo do Estado, onde os principais concorrentes apenas assinalam para a convencional fala “fortalecer e estimular a produção cultural e artística”, o cinema catarinense se mantém apegado a lógica do pensamento progressista, da identidade humana, de fragmentos de pensamentos coletivos que resistem e resistirão ao tempo.

O cinema feito no Estado mantém sua forma quase poética de independência, claro, mas levanta a mesma indagação que diretoras como Paula e Marina procuram responder: para onde, agora?

O futuro permanece uma incógnita.

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