Escondido entre uma comédia romântica de terceira idade, há um filme que busca entender a que ponto a humanidade está e para onde ela irá. Oliver Assayas decide usar o papel para embarcar no combate entre o moderno e o clássico. A evolução depende da tecnologia? Ou a tecnologia depende da evolução? A filosofia do apego/desapego está no cerne deste interessante Vidas Duplas que evidencia a dificuldade do caminho em se adaptar ao novo, quando não se sabe para onde aquilo está indo.
Escondido entre uma comédia romântica de terceira idade, há um filme que busca entender a que ponto a humanidade está e para onde ela irá. Oliver Assayas decide usar o papel para embarcar no combate entre o moderno e o clássico. A evolução depende da tecnologia? Ou a tecnologia depende da evolução? A filosofia do apego/desapego está no cerne deste interessante Vidas Duplas que evidencia a dificuldade do caminho em se adaptar ao novo, quando não se sabe para onde aquilo está indo.
Alain é um bem-sucedido editor de Paris que já foi considerado à frente do seu tempo. Com olhar amplo sobre as múltiplas possibilidades literárias, por outro lado, Léonard é um autor parado no tempo que só consegue escrever sobre o que vive, seu presente, enquanto Selena se sente entre os dois ao se observar querendo algo fora da realidade, ainda que também se sinta estagnada no seu trabalho. Valérie, por sua vez, é uma personagem que mexe com a vida dos outros, sem que consiga viver sua própria (e não à toa mexe com o assessoramento político e mídias sociais). Os quatro personagens nos colocam diante do discurso de Assayas sobre a memória virtual.
O diretor discorre sua preocupação sobre a legitimidade da arte sem ser a digitalizada. A discussão provocada é interessantíssima, portanto: podemos considerar que estamos diante de uma geração que não lê ou de uma geração que lê demais coisas supérfluas? O raciocínio que Assayas comanda é a de que estamos diante de uma precarização do estudo e da profundidade, algo que podemos ver diante de nossos olhos todos os dias, tendo em vista a qualidade do que se lê e a quantidade. “Estamos lendo como nunca, só lemos apenas redes sociais. E escrevemos ainda mais do que lemos”.
Neste debate, Assayas – sem a mais completa da intenções, talvez – nos remete a ideias subjetivas que nós mesmos temos sobre o tema, criando assim um cumplicidade quase que metalinguística com o espectador. Afinal, podemos argumentar sobre o quanto a digitalização nos deixa renegados a ecoar as mesmas frases e os mesmos algoritmos. Se todos os livros estiverem dispostos apenas em nuvens, bem, e quando essas nuvens dissiparem? Seremos a geração que jamais pensou? Seremos encontrados adiante por uma geração que sentirá desprezo por uma raça humana que não produziu praticamente nada, ao se ver diante de tão pouco conhecimento impresso e legitimado?
Assayas pode parecer arrogante na pele de Alain ao expor que não quer por completo a democratização da arte. Não deixa de sê-lo. O que, assumo que queira argumentar, é que, aristotélico que parece ser, a arte é mais do que apenas escrever algo ou desenhar algo. Leo encarna esse pensamento perfeitamente na pele de alguém que só consegue imitar a sua própria realidade. Assim, quando Selena conversa com ele num bar, sabemos o quão não surpreendente será sua reação futuro, por mais que dissimule o presente tempestuoso naquela cena. Estamos falando, afinal, de alguém nato na arte mimética.
Quando não se conforma a ser um filme retórico, de uma nota só ou preso ao triângulo amoroso que sugere na narrativa, Vidas Duplas estimula um bom debate sobre o papel da arte na sociedade e a noção do futuro que queremos. Diante da expectativa da digitalização, Laure é assertiva a dizer que precisamos evoluir para continuarmos estacionados. Do contrário, o caos imperaria. Leonard diz que busca o caos, mas procura apenas algo para continuar escrevendo sua vida. Assim, quando Valerie dá a notícia para Leo de que há algo novo no caminho do relacionamento dos dois, é perceptível o que o novo significa: continuar sobrevivendo.
Vidas Duplas foi exibido pelo nosso Parceiro, Paradigma CineArte.