Próxima Parada: Caléu Nilson Moraes

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Excerto do romance El conejo ou vida sexual de Deus

Por Caléu Nilson Moraes

Esta começou com um acerto.

Primeiro, ocorreu-me: os dramas humanos são ridículos. Os dos deuses, por outra parte, interessantes. Gosto de estudá-los e encher meus cadernos de notas a respeito.

Depois, o acerto: apostei mil e duzentos dólares num cão obscuro, um tal El conejo: venci e pagaram-me 13 por 1. Ouvira dois homens sussurrando:

“Vai dar El conejo.”

“Foi o chefe quem disse?”

“Sim.”

Ora, os chefes, como os deuses, não erram.

Com o dinheiro, abandonei São Francisco e voltei para casa, na Romênia. Eu tinha uma conferência que fazer, “A Vida Sexual de Deus”.

Quanto ao resto, deixe-me ver, tenho de pensar.

Voltemos ao acerto: de onde saíra o dinheiro da corrida de cães? Fácil: dois chineses, em Chinatown, me compraram um rim: queriam um pedaço do fígado, como fazem as aves de rapina, que devoram duma vez o órgão mais rico e robusto. Todavia, lhes dei um rim. Não o meu, mas o dum amigo. Por três mil dólares. A metade ficou comigo. Meus conhecimentos médicos garantiram o sucesso da cirurgia.

Sou enfermeiro e romancista.

Costumo, de bom grado, atender a pedidos de conferência, como esta sobre Deus.

Eu dormia com uma prostituta chinesa, quando atendi o celular. Fumara ópio e tinha vontade de vomitar, mas ouvi atento: a Sociedade Literária de Bucareste, chefiada por Mircea Cărtărescu, o melhor dos nossos autores e um amigo de longa data, pediu-me que falasse sobre Deus.

Então, falemos sobre Deus.

Sobre a vida sexual deste grande maluco dos céus.

Não foram específicos. Portanto, não sei se posso falar de deuses gregos ou hindus. Ou se devo restringir-me ao Deus dos ortodoxos.

Vale a pena pensar a respeito.

Como diabos se pode trapacear numa corrida de cães?

Lembro de um livro de Eduardo Kohn, Como pensam as florestas, em que descreve de que forma os Ávila Runa, do Equador, conversam com seus cães. Parece que usam um pidgin, um tipo de linguagem simplificada, já que os animais não são fluentes em ruídos dos humanos, tampouco estes últimos na língua dos latidos. Por isso, pergunto-me: o chefe dos homens que ouvi cochichar dominava o tal pidgin? Terá ele chegado perto dos cães e os comprado…? Com o quê? Ração extra? Que diabos pode ter valor para um cão…? Uma cadela, talvez?

É bom que pensemos a respeito.

Ainda que seja romeno, prefiro os Estados Unidos. Meu país é pobre e não vale a pena. Todavia, não recuso os convites de Cărtărescu.

Também passo largos períodos no Brasil, onde casei, certa vez, e tive um filho.

Depois, mandei tudo para os infernos e sigo pelo mundo, ora num país, ora noutro.

Meus romances são fracos. O primeiro, A educação de um personagem, fez algum sucesso. Roubei o título de F. Scott Fitzgerald, que o abandonou em favor de Este lado do paraíso. Que tipo de homem desiste de um título destes? Um tolo, um bêbado…

Certa vez, ouvi que os donos combinam entre si e colocam pimenta no cu do cão que escolheram para vencer. Ele, quase sempre, vence. Acho que foi isto que fizeram com El Conejo. Não tem a ver com o pidgin dos índios Ávila Runa.

A educação de um personagem é realmente um título muito bonito.

Conta-se que Max Perkins, o editor de Fitzgerald, ficou tão empolgado com ele que instigou o autor a terminar o romance, o primeiro. Entretanto, cá entre nós, Este lado do paraíso não é tão ruim. Também gosto. Não sei, para dizer a verdade, qual dos dois eu prefiro.

Minhas conferências são simplicíssimas.

Por isso, enquanto viajo, costumo prepará-las: só preciso de internet e da minha memória prodigiosa que funciona, é verdade, apenas com os livros. Se li a respeito, não me esqueço. Esta é a minha divisa.

El conejo é um bom título para um romance. As aventuras dum cão de corrida. Meu sucesso depende um pouco da mediocridade dos meus escritos. Mas estou conformado.

Tolstói, por exemplo, não produziria um romance sobre cães de corrida: кролик.El conejo… Ah! É bem verdade que escreveu um texto sobre dois cavalos conversadores que está entre os mais belos sobre os bichos. Ali há o tal pidgin, porque, logo que o lemos, descobrimos como é ser um cavalo.

Não sei se vale a pena investigar as trapaças nas corridas de cães. Talvez.

Devo pensar sobre isto.            

Meu texto não está de todo correto.Não abandonei, prontamente, São Francisco.Primeiro, sou um opiômano. Não pude desistir da droga e correr para a Romênia, porque lá ela não existe. (Quer dizer, existe. Mas não é fácil descobrir onde está.) Há outras, claro, mas prefiro o ópio, o vício de Coleridge ou Thomas de Quincey. Aprendi que posso escrever melhor sob o seu efeito alucinógeno. Se não melhor, mais rápido.

Por isso, estas notas, que não são as da conferência, mas dentro das quais elas vão aparecer, deveriam ter começado deste jeito:

Era um velho marinheiro, e deteve um dos três…

Vamos imaginar três jovens numa das ruas de Bucareste. Ora, Bucareste não tem portos, então, que diabos estaria fazendo um marinheiro por lá? Bom, foda-se. Lá estava o marinheiro. Ele toma um dos jovens pelo braço. Tem as mãos descarnadas e podres. Eles querem seguir para um casamento ou algo que o valha, mas ele começa a sua história, inclemente:

Havia um cão, El Conejo…

Ah! Que história linda. Eu preciso estendê-la, transformá-la num romance. El conejo, o maior dos cães corredores.

Pensemos, senhoras e senhores, pensemos.

Caléu Nilson Moraes, natural de Santa Cecília (SC), é doutor em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É professor e escritor. Publicou, entre outros, Guia literário para machosDeclínio e queda de mim mesmo (primeiro volume), A morte do alquimista e As aventuras de Lorde Nélson. Foto: Caléu Nilson Moraes. Crédito: Echely Maria da Silva França

Próxima Parada: Yara Guasque

Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.

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