Por Artêmio Filho
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Tome sol, tome café, tome vida pomodoro. Talvez toda a minha escrita seja mesmo a minha terapia. Não existe um poeta dentro de mim. Existem vozes que incansavelmente murmuram e lotam as minhas gavetas. Não é a voz de um poeta. É a minha própria voz como excremento do meu próprio eu. Qual o sentido de escrever ou descrever o meu eu ser humano se não escrever para mim mesmo as minhas próprias dores? Estou desenhando um mapa íntimo dos meus sentimentos e compartilhando com o mundo os mistérios mais densos de escorpião, áries, aquário. E essa conjunção cósmica de sol, lua e ascendente, se não tivessem dançado os astros esta coreografia cósmica, se as casas do zodíaco tivessem janelas, portas e aberturas, dançaríamos sob a luz dos cometas em signos não convencionais? E a voz que ecoa na cabeça, que preenche as lacunas agora evidentes, deixam fadigadas as minhas lembranças reais do passado? Ou se alinham em quadraturas selvagens revelando o inexplicável futuro que ascende? Mesmo os tucanos, com penas e asas, bico longínquo, mesmo os tucanos são enganados pelo próprio reflexo que o assombram quando traídos pela rigidez do bico, desnucam e morrem. Com suas penas e asas, morrem, no próprio reflexo à procura de um par, um igual, um par de asas, uma companhia no ar. As flores da laranjeira brotam enganadas pela estação que não chega. As flores tímidas chegam ainda no começo de agosto, a íris brota por um dia só. Os ipês não estão carregados ainda. Será que no passado eu não percebia? Tudo sempre esteve aqui, mas parece que eu nunca vi. É a vida se mostrando infinita e os meus olhos se mostrando infinitos, e a minha memória se mostrando falha e destrutível. O café esfria rápido mesmo em dias muito quentes. Significa que toda vida quando servida, esfria rápido mesmo em dias quentes. Todas as coisas esfriam demasiadamente rápido. O único calor que alimenta tudo é o núcleo, de onde jorra o fogo da sabedoria e nutre as rochas e as raízes, todos os minérios, toda a vida em superfície. O jorro quente de vida também queima. Se nós, humanos, nos aproximarmos da essência da vida, queimamos em bolhas irrecuperáveis, assim como um cigarro. A vida é como um cigarro virgem do jorro. Quando não queimado, vive na insignificância de ser somente um cigarro. Aí vem o homem destruidor e acende um maço. O tempo de vida de um cigarro é relativo à vontade humana de consumi-lo. No fim, um cigarro se torna filtro e é arremessado com maestria nas valetas e se desfaz com o tempo que passa. É um ritual sobrenatural sobre a reciclagem do útil para o inútil. Eu mesmo faço isso, sem cerimônias.
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descia pela ladeira e não havia ladrilhos, era cimento grosso, era preto, era piche.
os pés borbulhavam desajeitados na sola de madeira descosturada fazia pouco mais de vinte e cinco graus e meio e a sensação depois de um longo período desabando água era infernal.
estava cozido. a visão turva, sépia, embaçada. na testa sentia pequenos pontos d’água formando um mosaico simétrico
nos poros.
baixada a ladeira, logo à direita, uma mulher me olha, estremeço.
são três e pouco da tarde, talvez três e trinta e dois, por um triz, cabalístico. continuo firme, embora as minhas pernas não demonstrem isso, embora que todos os pequenos pontos d’água na minha testa são agora um jorro rebento da nascente de um rio, uma fonte inesgotável de um líquido salgado, não demonstrem isso. a mulher continua mirando, fixamente, em mim.
a mão na cintura, uma das mãos na cintura, a outra escorando a porta, a abertura da porta vermelha. uma puta vermelha, de cabelos vermelhos, muita bonita, de quarenta e poucos anos, cabelo cobrindo com uma ponta um dos olhos, batom vermelho, olhos verdes.
quando passei, senti que cada pedaço de mim ficou com ela. “o medo de ficar só me apavora e eu me desespero”, cantarolou baixinho junto à música que vinha do bar, junto às gargalhadas e risinhos abafados e o cheiro de cerveja.
deveria ter entrado para escaldar os pés.
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Cantam os pássaros na chuva, lavando as penosas asas do pó erguido pelo homem, sustentados pelos galhos mais baixos e os galhos mais altos, pelas folhas, pelo caule, as orquídeas e todo o verde do mato que acolhe os bichos com o que resta. Os pingos caem fortes e densos, molham naturalmente toda a parte de concreto de uma cidade, toda a parte sem vida toda a parte com vida e não poderia ser diferente vindo da natureza mãe. As grades foram retiradas, há liberdade. Há bebedouros de água benta espalhados pelos parques, há comida espalhada pelas calçadas, lixo nos bueiros, móveis nos rios.
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Artêmio Filho é gestor e produtor cultural no oeste de Santa Catarina. Vive e trabalha em Concórdia, na região do Alto Uruguai Catarinense. Desde 2014 é um Sabiá, colaborando com a pesquisa, elaboração, execução e avaliação de projetos artísticos e culturais pra região. Na escrita literária, além dos versos escritos em cadernos não publicados, lançou o livro “entre solstícios e equinócios” pela Editora Caseira (Florianópolis, 2015). Foto: Arquivo Pessoal.
Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.