A casa (versão quarentena)
Por Cris Vazquez
Depois de ficar um mês uma sobrequarentena sem sair de casa por uma questão de saúde, passei a pensar sobre a casa, a amar a casa. Perdoem-me aqueles que sempre a valorizaram, e nunca precisaram ou acham bobagem pensar tais obviedades.
A casa existe porque existe a rua. Para nos protegermos das intempéries e pandemias, construímos a casa, movimentando um enorme setor econômico. Depois de nos esforçarmos para deixá-la equipada, enfeitada e aconchegante, vamos para sonhamos com a rua, que é o que interessa. Não, não quero ter recaídas. O que importa é a casa, o lugar para onde voltamos exaustos todos os dias depois de matarmos leões, segurarmos rojões e darmos alguns sorrisos falsos.
Ela é o lugar onde podemos ser nós mesmos. Em casa, fazemos careta na frente do espelho, treinamos o cruzado de esquerda que nunca daremos no chefe, planejamos o próximo passo, como grandes estrategistas, educamos as crianças, assistimos ao nosso programa preferido, erramos uma receita, curamos as ressacas, ficamos nus, sonhamos e vivemos o amor, acordamos de pesadelos, assistimos e fazemos lives.
A casa é nosso inconsciente, representa nosso desejo mais profundo, como escreveu Cortázar, no famoso conto Casa tomada. Não à toa, existem as residências literárias, em que os escritores passam um tempo frente a frente consigo mesmos, apenas para escrever. E quem tem que fazer home office formal, como eu, só chora.
Ditados é que não faltam. Quem casa quer casa. Roupa suja se lava em casa. Cada um é senhor em sua casa. Até a Constituição prevê a casa como asilo inviolável do indivíduo. Conceitos que fazem a diferença entre o público e o privado.
Hoje em dia, o site das nossas empresas, os blogs pessoais ou nosso perfil nas redes, podem ser comparados à casa. Além do endereço físico, temos nosso endereço eletrônico. Desde aqueles muito frequentados, até os que funcionam apenas como refúgio artístico de seus criadores, nem por isso menos importantes para eles.
Tem problemas quem tem medo de sair de casa e quem nunca quer voltar para casa. Ela nos equilibra, revitaliza e protege.
E agora que estou zerada, só peço licença para dar uma voltinha. Vamos? (Socorro, corta!)
E quando tudo isso acabar, vamos nos abraçar e dar uma voltinha?
Texto escrito em 12/02/18, readaptado em 30/04/2020.
Cris Vazquez é advogada pública em Florianópolis/SC e Mestre em Literatura pela UFSC. Tem contos publicados em coletâneas diversas e nas antologias Onisciente contemporâneo (2016), Translações singulares (2017), Não culpe o narrador (2018) e Tudo soma zero (2019). Foi pré-selecionada no Prêmio Sesc de Literatura em 2016 na categoria Livro de Contos. Em 2017, publicou seu primeiro romance, O abismo entre nós, pela Editora Moinhos. Atualmente, é mestranda em Escrita Criativa pela PUC/RS. Clique aqui para conhecer o site da autora.
Foto: Cris Vazquez. Crédito: Alexandre Alaniz
Próxima Parada: Caléu Nilson Moraes
Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.