Próxima Parada: Marta Martins

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Super-ações

Por Marta Martins

Este buraco é uma zona morte. Não tem vida aqui. O sol está ficando cada vez mais quente. Tem pedras embaixo disso, mas é preciso atravessar.

Eu acho que aqui tudo morde. A noite passada foi cheia de emoções. Nem acredito que dormi depois. Foi bem intenso, parte do plano de hoje será guardar energia e sair para procurar comida. Eu estou confiante. É por essas coisas que eu vivo. Continuar lutando contra os elementos. Não gosto dessa umidade o tempo todo. Todo santo dia faço alguma coisa diferente, mas o ambiente está acabando comigo. Meu estômago ronca, mas eu me concentro numa missão a cada vez. É preocupante. Preciso pensar em como comer isso, uma vez comi cru, mas é nojento, talvez seja melhor cozinhar, mas tem muita terra. Isso é bem nojento, parece que tem merda. Nenhuma parte é comestível, preciso de comida de verdade.

Neste momento estou decidindo o meu destino. Isso aqui não é passeio num parque, tudo pica, arranha ou morde. Dá pra ver que eles passaram por aqui, sinto o cheiro. Todos eles estão passando por essa trilha, é o território deles. Lá vem um. Agora, tenho que ser paciente. Acho que acertei, mas nada de sangue, meu coração quase saiu pela boca. Estou lidando com esse desgosto. A oportunidade era a melhor possível, mas agora estou irritado. Que desanimador. Isso é péssimo.

Desenhos pandêmicos: meditação da insônia, de Marta Martins (Nanquim sobre papel, 2020).

É quase impossível ficar de pé aqui. A caminhada de hoje está sendo mais longa do que eu esperava. Já está bem mais claro. Vou começar a trabalhar. Tenho que ficar longe do solo. O solo é vivo. Mas que merda, parece que eles estão subindo em mim. Só quero que o sol apareça logo. Preciso pensar direito, pensar melhor. Essa noite vai ser bem difícil.

Com toda essa tensão não vou gastar calorias. Não aguento mais tanto estresse. Não temos como dividir calor corporal. Está difícil, mais difícil do que pensei que seria. É como se estivesse definhando. Preciso abandonar esse sentimento negativo. Entramos nisso juntos e vamos sair juntos. Sinto que posso continuar, mas meu cérebro me manda descansar. Aquilo são águas passadas. Não fique aí fora, é muito assustador. Precisamos ficar juntos e superar tudo. A sobrevivência é o objetivo do jogo.

Desenhos pandêmicos: tu e eu bem longe, de Marta Martins (Nanquin sobre papel, 2020).

Isso está acabando comigo. Quando você perde o controle às vezes é melhor abrir mão dele.  Tenho que me lavar lá fora feito um animal. Eu odeio tomar banho. É difícil jogar água em lugares que podem ficar fedidos. Esperar pela notícia é desgastante e ter que continuar fazendo progresso. Esse é o começo do resto das nossas vidas. Eu não senti mais fome. Eu precisei de você por muito tempo, mas não vou mais precisar tanto. Isso me deixou muito triste, isso dói, estou com medo, mas cheguei até aqui porque fiz escolhas melhores. Eu tô com medo da situação que vou enfrentar. Procurei me manter ocupada e evitar qualquer situação desagradável. Tem sido uma louca jornada. Mas já não é mais a sua jornada, é a nossa jornada.

Isso é muito frustrante. Eu sabia que ia ser complicado. Quando isso começou parecia divertido e desistir não é da minha natureza. Não dá pra ser derrotista. Meu lema é nunca me render, nunca desistir. É muito reconfortante quando decido uma coisa e a gente faz. Passamos muitos momentos difíceis, mas havia uma chama dentro de mim dizendo pra seguir em frente. Agora é a vez de admitir a derrota. Não vale mais a pena.

Caramba, a gente tem que carregar tudo isso e iniciar a estrutura, fazer o carregamento e levar para o topo da montanha. O peso é um problema. Elas vão ficar a metade pra fora. Tem que colocar um calço. O projeto está bom, só falta ser ajustado. Tem que posicionar o quanto antes. Tem que ter fé. Tem que pensar positivo. Não quero ser pessimista, mas sou realista. Você desistiu antes de começar.  Sempre aponta o lado negativo.

Preciso usar outro sistema. Assim não perco outros. Não é tão simples, tem muita coisa envolvida. Eu tenho que pensar como fazer. Preciso de uma abertura, mas não quero que entre muito ar, só o bastante para eu poder passar. Eu nunca fiz isso antes, mas estou indo bem, só preciso continuar. O medo me mantém seguro. Eu não estou esperando que isso seja fácil. Nada na minha vida é.

A caminhada de hoje está sendo mais longa do que eu esperava. Vou começar a trabalhar. Estava tudo errado. Vai ficar certinho. Espero juntar recursos. Esse desafio está me forçando a sair da minha zona de conforto, aprender novas habilidades e no quesito de crescimento pessoal eu não poderia esperar nada melhor. Tudo gira em torno de usar a natureza para tornar a sua vida mais confortável. Eles estão rindo de mim agora, mas vão ver só.

Marta Lúcia Pereira Martins (Livramento, RS, 1962) é graduada em Educação Artística pela Universidade do Estado de Santa Catarina (1988), Mestra em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1995) e Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005). É professora no Curso de Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina atuando na Graduação e no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais nas áreas de Desenho, Teoria da Modernidade, Literatura, Arte Contemporânea, Teoria da Imagem, História e Crítica da Arte e Fotografia. É artista visual, ensaísta, narradora de ficção e fotógrafa. Foi premiada por Edital da Funarte na categoria de Estímulo à produção crítica, em 2012. Publicou “Narrativas ficcionais de Tunga” (Editora Apicuri, 2013) e “Quase coisa nenhuma” (Cultura&Barbárie, 2018). Fez Pós-doutorado com pesquisa sobre a poeta e artista visual Ana Hatherly, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em 2018. Foto: Arquivo pessoal.

Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.

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