Próxima Parada: Paulino Júnior

Compartilhe

Morte Infame

Por Paulino Júnior

Meu amigo me pergunta do que tenho medo de morrer. A pergunta vem de surpresa, mas a resposta anda comigo: Atropelado. Antes que pergunte o porquê, me adianto: É muito banal!

Depois que meus exames médicos não trouxeram notícias tão boas, passei a fazer caminhadas diárias para tentar prolongar a vida ou, ao menos, não precipitar o fim. Porém, mais do que nunca, passei a sentir pânico de morrer. Tantos carros e eu um só. Repare: um carro/uma pessoa, um carro/uma pessoa, um carro/uma pessoa… Cada pessoa com um carro na rua é como revólver na mão de macaco. E eu só, só com a roupa do corpo. Sinto calafrios. Meu coração dispara quando tenho que atravessar a rua.

Meu amigo diz que não tinha pensado nisso. Seu medo é morrer de alguma doença degenerativa como câncer – que levou seu pai. Concordo sobre a penúria, mas falecer tendo um automóvel como a última visão da vida é muita miséria humana. Bem ou mal, uma doença te prepara, dá pra se despedir dos entes, pensar filosoficamente na vida, quem sabe dá até para concretizar um desejo adiado. Mas pense no acidente provocado por um estressado de plantão, por alguém fuçando no celular ou pelo sujeito com um cigarro a tiracolo, jogando fumacinha pela janela, enquanto se regozija com sua máquina.

Tipos que só ficam presos mesmo no engarrafamento. Aliás, quer matar alguém? Esqueça as armas convencionais, só espere o assinalado atravessar a rua. Dá até pra economizar tempo e ceifá-lo em cima da calçada. Alegue que jogaram luz alta nos seus olhos (não tem problema se for durante o dia). Embriagados e trôpegos ao volante também são redimidos. Uma merreca de fiança e o réu ainda pode reforçar os laços familiares. Ontem mesmo li no jornal: Avó e neta atropeladas na calçada. O sujeito estava tão chapado que pregou no volante. Ora, a mãe e o pai do jovem “motorista” depõem que só pode ter sido engano, pois as vítimas estavam no lugar certo na hora errada.

Finados por causa de uma doença grave ainda recebem a condecoração simbólica da batalha pela vida. Já o atropelado se recolhe à insignificância de perder a vida para um monstrengo de ferro, rodas e desprovido de cérebro. Pois automóvel, quando muito, só respeita automóvel. Andar a pé virou uma roleta russa. E ainda tem as balas perdidas, no formato de motocicletas, pilotadas por sujeitos que pensam ter tirado CBNH (Carta Branca Nacional de Habilitação), com autorização para infringir leis de trânsito e de bom senso.

 Para nos confortar, ou distrair, jogo uma daquelas frases que a gente acha legal e guarda: “Daqui ninguém sai vivo”. Digo que é do Jim Morrison. Meu amigo dá um sorrisinho e fica quieto. Eu também fico, e penso que, pelo andar da carruagem, para as doenças físicas ainda há solução.

Paulino Júnior (1979) é natural de Presidente Prudente/SP, mas vive em Florianópolis desde 2005. É graduado em Letras e mestre em Teoria Literária, mas abandonou a academia para viver ‘pela’ literatura. Todo maldito santo dia (Ed. Nave) é seu livro de estreia e foi premiado pela Academia Catarinense de Letras como ‘Melhor livro de contos publicado em Santa Catarina em 2014’. Contista por convicção e cronista por acidente, de 2014 a 2016 manteve a coluna semanal ‘Labuta do Paulino’ no jornal Notícias do Dia (Florianópolis), experiência que resultou na coletânea A felicidade dos gafanhotos e outras crônicas (Ed. Class, 2018). Foto: Cesar China.

Próxima Parada: Dennis Radünz

Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *