A faca e o salame
Por Renan Bernardi
Finalmente a fome foi maior do que a preguiça e o fez, muito a contragosto, tirar o notebook do colo e levantar.
Era fim de tarde, o almoço tinha completado o caminho digestivo e o vazio da barriga já cutucava há alguns minutos. Cedo para jantar, não estragaria a próxima refeição dar uma enganada na fome até a noite.
Na cozinha, abriu a primeira gaveta do lado esquerdo da pia e pegou uma faca. Fechou a gaveta com a faca na mão e virou-se.
A faca tinha a lâmina torta. Ergueu a mão que a segurava na altura dos olhos, e olhou atentamente. Muito torta. Fechou um dos olhos – o esquerdo – para ver com maior exatidão. Absolutamente torta.
Riu.
Ainda com a faca, foi até a geladeira e pegou uma perna de salame, guardada na parte de baixo, na última prateleira, assim como havia lhe ensinado um velho senhor dias antes, quando esteve na tabacaria, ao lado de sua casa. “Deixa as pernas lá embaixo, na bacia”, disse o senhor, “é o melhor lugar pra guardar! Nem pense em deixar no congelador, estraga tudo!”.
Ele não sabia se concordava, mas não via por que não seguir a instrução.
Com a faca em uma das mãos, e a perna de salame na outra, foi até a mesa. Colocou o salame sobre ela, segurou firme para cortar um pedaço.
Infelizmente, a mão que segurava o salame estava perto demais do corte torto – absolutamente torto – da faca que, no fatiar de um pedaço, também pegou um dos dedos, e era sangue. Sangue.
Ele, como bom hemofóbico, só se lembra até aí.
Meia hora depois foi encontrado pela companheira que, ao chegar em casa, deu de cara com o desmaiado no chão da cozinha.
Depois de perceber o que tinha acontecido, ela se acalmou, lavou a mão suja de sangue do companheiro e, com muito esforço, o levou até a cama, onde, horas depois, ele acordou sem entender nada. E ainda com fome.
Renan E. Bernardi é redator, roteirista e editor de textos de Concórdia-SC, com formação em Comunicação Social pela FADEP (hoje UNIDEP) de Pato Branco-PR. No meio artístico, escreve músicas desde que se lembra, e contos desde 2020. Também atua como colunista na Revista Artemísia de Chapecó-SC, onde fala sobre cultura, além de realizar um podcast de esquetes (O curiosólogo) e um programa de entrevistas (Esmerilhando). Foto: Arquivo pessoal.
Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.