Aqui debaixo olho através desta perspectiva invertida. Observo-o… Arrasta-se como o aposentado-mamute. Sacolas plásticas, um buraco no meio do peito, meia dúzia de enlatados vencidos esmagam bananas vencidas. Ele segue o caminho das formigas, trilha invisível de feromônios fluorescentes. Aqui debaixo, deitada, comprimida entre as substâncias e o fogo, observo. A lentidão da resina escorre no metal, o gosto da fruta podre, o improvável que surge e me agride, sacode, golpeia a memória, os braços abertos como as asas do menino. O menino nu ensimesmado, pés na terra fria ou no oceano, na tábua bruta, poça de urina quente. O menino me espanta, porque fui menina ensimesmada, carreguei alimentos vencidos, bananas esmagadas, suportei mamutes que tentaram apagar minha trilha, comprimiram meu corpo, cavaram na casca de porcelana um buraco branco. Minha voz nasceu então. Foi preciso atrito e o fogo que tudo apura e purifica, para que as asas imaginárias se transformassem em braços. Vê-lo aqui debaixo, eu, rosto no pó, ele, aprisionado na tela e livre pelo bronze. Foi preciso para entender essa cicatriz.
Renata Fortes Gaertner nasceu em março de 1962, em Cachoeira do Sul/RS. Reside há 26 anos em Concórdia/SC. Graduada em Educação Artística pela ESASC/RS (1985). Pós-graduada em Metodologia da Pesquisa teatral: Formação do Ator, UDESC/SC. Professora de teatro na Casa da Cultura de Concórdia desde 1994. Atua no movimento cultural concordiense nas artes visuais, literatura, teatro e socialização da memória (Museu Histórico Hermano Zanoni). Escreve desde a infância, quando publicava poemas no Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul. Na cidade gaúcha participou do grupo Verso Explícito, de intervenções poéticas urbanas e de publicações em fanzines. Tem narrativas publicadas na coleção Caderno de Autoria do Sesc-SC, nas edições: O Livro da Epifanias (2008); Objetos Embutidos (2008); Manual de tautologia (2009) e Desejos de Linguagem (2010). A narrativa permeia espaços significativos no trabalho da artista e projeta a palavra além da escrita convencional. Nas instalações, livro de artista, performance, existe a presença do texto que constrói a sua poética. Foto: Veridiana Fortes Gaertner
Próxima Parada: Fernando Boppré
Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.