Próxima Parada: Telma Scherer

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Uma mulher tem dois seios
e pode escrever sobre eles
se ela quiser.

Uma mulher pode escrever enquanto
os seios repousam na beira da mesa
(de repente doloridos, inchados,
inertes a qualquer averiguação.

Ela pode escrever, distraída,
enquanto
sobre os seus seios pousa também
o olhar
de um homem,
que não olha senão para o seu livro,

mas que
em momentos estranhos
(quando ela fica estranha)
desvia os olhos do livro
para os seios

e mais,
se estão ali, sobre a mesa,
como dois guardiões da linha.

Pessoas sem seios,  
pessoas sem útero
– ela pensa – têm mais tempo
porque não precisam
se livrar do que não têm:
a mágoa, a dor e o inchaço,

o aperto do sutiã, e o ser olhada
quer se queira, quer não.

Um homem tem dois pés
que não doem, repousam sobre o puff
enquanto ele olha para o livro.
Ele carrega teorias
como quem
masca a argamassa

e já comeu
todos os tijolos.

Os pés da mulher grudam
na superfície do assoalho
antes de deslizar.
Eles precisam sentir o chão
para que ela possa
talvez escrever – talvez
escovar os dentes
com suas raízes
finalmente encobertas
por esse olhar
molhado em tédio.

– Está com fome? – ele pergunta,
em sinal de que ela se entranha.
Ela sempre está com fome
e comeria um novilho
com seus seios
assim
doloridos, surdos e
de repente – novinhos em folha.

Então ele pode
deitar fora a argamassa e
usar os seus pés, tirá-los do puff,
afiar as facas
na cozinha, como um samurai,

depois cortar os bifes
gordos e sangrentos que lhe dão
um certo nojo.

Eles comem tudo e
comeriam
as telhas da casa
e todo o conteúdo
da caixa de gordura.

Uma mulher pode engordar
– se ela quiser,
pode cuspir, pode
ficar parada, guardiã de si
por longos pontos e
linhas retilíneas
– ou curvas.

Ela não precisa
ser uma mulher
que tem um homem
que corta os bifes.

Ela pode
segurar com as mãos
as pernas assadas
de um cadáver
– e roer
a pele dos dias, dura
como todos os tijolos

que saem dos seus lábios
quando ela escreve, distraída,
sobre os puffs e as facas
(fossos kamikazes)
que não importam,
mas gozariam entre
seus dois seios doloridos.

Telma Scherer é artista e professora de literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem trabalhos na área das artes visuais e da performance. Publicou, entre outros, os livros de poesia Squirt (Terra Redonda, 2019), Entre o vento e o peso da página (Medusa, 2018) e Depois da água (Nave, 2014) e o romance Lugares ogros (Caiaponte, 2019). Foto: Arquivo pessoal.

Próxima Parada: Juliana Ben

Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.

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