Somos grandes roedores. Roedores de tempo. Nunca imaginei que em tempos emergenciais meus objetos preferidos desapareceriam. Ficariam apenas um chinelo e muita ansiedade no ar. Sei que ansiedade não é um objeto, mas convenhamos, podemos nomear sentimentos como objetos. Angústias como objetos, já que só sabemos consumir. Consumir angústia, consumir medo, consumir promessa falsa de alívio. Dos tempos emergenciais que vivi, um foi aquele do fogo. O fogo espalhado se aproximando dos arredores das seis casas de material. Em Candói. O prêmio das casas de material não era pelo jeito um prêmio seguro. As de madeira, claro, estariam assim por um risco mais eminente. Meu pai nos preparou antes de dormir. Galochas e nada de pijamas, mas sim roupas prontas para podermos fugir. Outro eminente, mas praieiro. O barulho de uma catarata na hidroelétrica não muito distante. Água, e muita água, até espumante devido à força de sua queda. Banhos de catarata ou melhor de hidroelétrica. Risco, descer do telhado para apanhar. Obedecer uma ordem que é um consolo, já que não tínhamos saída, pois o telhado não se conecta com o céu em uma passagem misteriosa e torcida. O pó do porão e sua escuridão de sempre. O violino de uma corda só, quando tocado com barra de ferro fazia a moça, que trabalhava e morava em casa, se rir de chorar, até mijar. Uma convulsão involuntária, eu diria. Sei, sei que o normal seria chorar de rir. Mas a ordem da convulsão á assim mesmo desencadeada ao contrário. Uma sensibilidade aflorada de maneira tão gutural? Sei também que gutural se refere às cordas vocais, mas neste caso qual palavra definiria alguém neste estado de pânico, ou prazer intenso, que sente com os condutores lacrimais e da uretra, pulmão, e até com os órgãos internos expelindo lágrimas e mijo?
Não sei mais que riscos vivemos. Também há na vivência de partilhar os primeiros anos do ensino fundamental com uma colônia de estrangeiros um disparate. Isto no interior do Paraná. As irmãs canadenses que eu tinha ciúme, a italiana chefe de nossa tribo repleta de meninos, cuja mãe fazia uma torta de maçã deliciosa, meu namorado inglês. Não tinha mais de sete anos. Na memória da pedra quente onde eu sentara escorria um filete de xixi. De montar um colar com pérolas falsas encaixando uma a uma, ou ouvir a amante de meu pai choramingando debaixo da janela de uma pousada à beira do rio, que abrigava os trabalhadores solteiros, ou seja, sem família, ainda sem casa, onde meus pais jogavam canastra. Tudo parece sem relevância colocadas as memórias dentro de um lençol. Dentro dele cabe tudo, coroa de flor para uma coruja morta e até mesmo o estranhamento da magnitude e tamanho da casa dos donos da fábrica de papel, na Avenida Brasil em São Paulo, que meu pai em uma reunião de negócio nos levou. Eram americanos, o casal divorciado. A ex-esposa mais próxima de nós, pois o registro de sua voz não me é tão inventado. Os filhos que tinham acionado o pai judicialmente.
Eu era ainda mais pequena em outra cintilação, minha imagem de casaco de lã no espelho do hall do apartamento de meu avô, quando chegamos de kombi madrugada, depois de termos sofrido um desastre sem grandes prejuízos.
No fogo meu pai agarrou documentos e escrituras. De que adianta estar preparada com galochas de borracha que logo derreterão se o fogo for realmente uma ameaça próxima? Esqueci do vento, das tempestades, dos raios que como descargas elétricas racham árvores e revolvem a terra. Um cortou a árvore do jardim ao meio incendiando o vidro à nossa frente. E os ventos que sempre respeitei, mas que me convidavam assim a observar as árvores dançando, que pareciam me responder, depois que acordada por uma pressão enorme nos vidros imaginamos pelo ruído sua força. Sovou até retorcer a enorme Garapuvu à nossa frente na vista para o mar. O barulho da queda até que foi suave, mas depois de horas de terror pudemos identificar o que faltava na paisagem. E o rastro do tornado que insistiu em deixar gravado: estive aqui e retornarei. E retornou, depois de 6 de dezembro, em março seguinte e mais outras duas vezes. Fogo, pó, raio, vento, água. E agora? Nem o relógio de cordas, imagens de objetos que tinham seu lugar num passado que se despede. As capivaras são vorazes. Sedentas de água comem as bananeiras. Justamente agora que esperávamos tanto comer seus frutos. Vivemos em abundância e a escassez que nos bate à porta não será mais amiga. Comam as memórias, pois foi tudo o que nos restou. Fomos vivos, saltávamos na água, as árvores eram verdes e se rejubilavam ao vento. A vida era um dom que perdemos.
Yara Guasque (São Paulo, 1956). Vive e trabalha em Florianópolis desde 1988. Artista e pesquisadora independente, editora do Journal for Artistic Research, JAR. Área de formação: Licenciatura plena em Artes Plásticas, FAAP/SP; mestrado em Literatura, UFSC; doutorado em Comunicação e Semiótica, PUCSP; pós-doutoramento em Estética e comunicação, Universidade de Aarhus, Dinamarca. Foto: Arquivo Pessoal
Próxima Parada: Telma Scherer
Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.