Por Heron Moura
A ação política pode ser distorcida por um mito: o de que antes da corrupção, reinava a pureza. Vou mostrar como esse mito aparece em dois importantes pensadores, de épocas e situações distintas, mas com efeitos similares sobre a ação política que eles imaginavam. Rousseau e Pasolini viveram e sofreram o mito da pureza.
Para Jean Jacques Rousseau (1712-1778), o ser humano rompeu o laço com sua autenticidade ao se tornar um ser social. Antes de viver em grupo, o ser humano estava imerso em duas naturezas que se complementavam: a natureza do eu e a natureza externa. Não havia separação entre os mundos interior e exterior, não havia conflito. Os homens se buscavam pouco, o bom selvagem era um solitário por instinto e por opção. Os encontros entre os seres humanos eram talvez bruscos, mas nasciam das paixões que emergiam nos contatos entre as sensibilidades.
Em algum momento mítico, essa ligação de sensibilidades se rompeu. O ser humano se afastou da natureza, se distanciou da sensibilidade dos outros e, pior de tudo, se exilou de si mesmo. Depois da perda desse paraíso do sentimento, resta ao ser humano viver numa sociedade tirânica, alienante e materialista.
Embora mítica, essa saída do paraíso tem uma razão bem identificada: o surgimento da desigualdade social. Para Rousseau, a sociedade nasce sob os signos da tirania e da injustiça: o homem nasce livre e em todo lugar está acorrentado. Rousseau não está criticando uma sociedade em particular: ele está criticando toda e qualquer sociedade. Porque, para ele, toda sociedade está ancorada na tirania e na desigualdade. O pobre é tiranizado pelos ricos, e os ricos miseravelmente dependem dos bens e dos benefícios que os pobres lhes proporcionam.
Rousseau afirma que todos, nas sociedades policiadas, perderam a autenticidade. O pobre por ter de satisfazer as necessidades da elite, e o rico por ter de viver num mundo de adulação e hipocrisia. O pobre tem piolhos, e o rico tem perucas (esta imagem é minha, não de Rousseau). A crítica de Rousseau atinge o cerne das sociedades: a troca de bens materiais. Rousseau afirma que a sociedade é a organização de uma troca desigual de bens, e toda ciência e cultura, para ele, estão a serviço dessa desigualdade sistemática. Os seres humanos se corromperam não por terem comido o fruto proibido da sabedoria, mas por terem acumulado bens. Da propriedade privada cumulativa, vieram a infelicidade das nações e a morte da sensibilidade do ser humano inocente.
Desta forma, Rousseau, ao longo de sua vida, propôs um rompimento radical com os grilhões sociais, em busca do eu perdido. E quem encarnava a busca deste eu perdido era ele mesmo, Jean Jacques Rousseau (ver A transparência e o Obstáculo, de Jean Starobinski).
Portanto, história social e história pessoal confluem, mas a contrapelo do tempo e do fluxo histórico. O relógio da história tem que andar para trás, em busca do paraíso perdido. É o oposto do tempo histórico marxista, que anda sempre para frente. O avançar do tempo histórico implica um processo de corrupção: “no curso do tempo, o homem se desfigura, se deprava” (STAROBINSKI, 2011, p. 29).
A utopia de Rousseau está situada antes do tempo, antes do nascimento da história. Obviamente, uma jornada tão exigente para fora da história impõe sacrifícios a quem deseja recuperar o eu perdido. O crítico da sociedade sofre na pele a derrisão e a exclusão sociais, mas, ao mesmo tempo, concentra em si toda energia do profeta do mundo perdido, pois “ele é o único, em um mundo corrompido, que soube preservar o arquétipo ideal do homem da natureza” (STAROBINSKI, 2011, p. 278). Embora viva num mundo impuro, o profeta da pureza tem um pé fora da corrupção generalizada.
Línguas míticas
A linguagem é um elemento importante nesta busca da inocência. Seguindo o seu método de reconstrução histórica imaginária, Rousseau supõe que as línguas humanas passaram por estágios que refletem as condições históricas. Na época da vida utópica (que ele não situa propriamente em nenhum lugar, para não ter que exibir os detalhes deste mundo feliz), as línguas eram mais cantadas, com uma estrutura gramatical mais fluida. Os conceitos que as línguas exprimiam eram baseados na imaginação, com grande riqueza metafórica (ver Uma breve história da linguística, de Moura e Cambrussi). Os seres humanos usavam estas línguas míticas para exprimirem suas paixões e sensibilidade. Era uma linguagem de poetas e não de comerciantes. Servia para o intercâmbio de emoções e não de bens.
Depois, tudo se perdeu. As línguas se tornaram mais rígidas, mais gramaticalizadas e mais estereotipadas. Não era mais a língua viva das assembleias livres, mas a língua morta dos burocratas e do exército. “As sociedades adquiriram sua derradeira forma: nelas só se muda algo com canhão e escudos; e como não se tem mais nada a dizer ao povo, a não ser passa o dinheiro, isso é dito com cartazes nas esquinas, ou com soldados nas casas. Não é preciso reunir ninguém para isso; ao contrário, é preciso manter os sujeitos esparsos” (Rousseau, Ensaio sobre a origem das línguas).
Segundo Rousseau, as línguas modernas servem para oprimir o ser humano e não para libertá-lo. A escola, a ciência e as artes são formas de aprisionar o homem civilizado, submetendo-o ao domínio da inautenticidade e da corrupção.
A corrupção não afeta partes da sociedade; ela é intrínseca à natureza dos laços sociais. Corrupção política e corrupção moral: a polis é uma infecção. Curiosamente, metáforas atuais sobre corrupção no Brasil também tendem a conceptualizar a corrupção como algo inerente à vida social e que se estende indefinidamente no tempo (ver MOURA e SILVA, 2020).
Como o próprio Rousseau reconhece que a volta ao mundo da pureza é impossível, pois os seres humanos atuais já foram transformados pela experiência histórica, entendo que o mito da pureza tende a ser imobilizador do ponto de vista político. Ou refazemos a sociedade de cabo a rabo, de uma forma ainda mais radical que as que foram propostas pelas revoluções modernas, ou só cabe ao poeta da inocência se refugiar no romantismo da natureza ou na vida interior mais secreta. Mas nem vida interior nem natureza promovem mudanças sociais. Na busca do bom selvagem imaginário, nos refugiamos num castelo de pureza. Mas quem disse que existe uma interioridade pura? Quem pode ser o profeta da pureza?
Profeta da inocência
A mesma busca da pureza se encontra na vida e na obra do escritor e diretor de cinema Pier Paolo Pasolini (1922-1975). Pasolini foi o Rousseau do século 20. Grande cineasta, ensaísta e poeta, encarnou na própria pele o mito do profeta da inocência, arauto de um mundo perdido e corrompido pela sociedade burguesa.
Em um de seus primeiros filmes, Accatonne (1961), que recebeu no Brasil o título de Desajuste Social, Pasolini mostra a vida dos moradores dos subúrbios miseráveis de Roma. Em plena época de desenvolvimento capitalista da Itália, esses bolsões de cultura camponesa e proletária se situavam fora dos laços da sociedade que Pasolini considerava uma continuação do fascismo. Os jovens pobres eram autênticos, simpáticos e, a seu modo, felizes.
Ao contrário de Rousseau, Pasolini localiza a sua era da inocência num lugar bem determinado: a vida dos pobres de cultura tradicional e local. Obviamente, ele não nega que os pobres italianos eram explorados, mas Pasolini vê na vida autêntica desses indivíduos autônomos um retrato talvez ligeiramente distorcido do que pode ser a felicidade.
No entanto, essa vida antiga bruscamente se transforma, e os corpos livres são aprisionados na sociedade de consumo. Pasolini, dez anos depois de Accatonne, fala em genocídio da cultura popular italiana. Na década de 70 do século passado, quando a sociedade tirânica do consumo se instalara na Itália, os bairros pobres agora abrigavam seres “tristes, neuróticos, inseguros, plenos de ansiedade pequeno-burguesa; com vergonha de serem operários, buscam imitar os “filhinhos de papai” (Pasolini, Lettere luterane, p. 678, tradução minha). A inocência já estava perdida, a pureza era um estado já distante.
Se Rousseau colocou o paraíso fora da história, Pasolini foi expulso do paraíso em dez anos. O genocídio da felicidade foi completo, segundo ele. A sociedade de consumo conseguiu o que nem o fascismo tinha conseguido: a destruição da intimidade e do eu. O povo, como em Rousseau, se tornara um exilado dentro de seu próprio país.
Pasolini se voltou para um passado mítico, e numa trilogia famosa, filmou o que ele considerava a vida livre e autêntica de povos do passado, para os quais o corpo era expressão direta da sensibilidade. Este passado quase mítico contrasta com a brutalidade da Itália contemporânea. Pasolini augurou sua própria morte violenta, assassinado por um garoto de programa da periferia que ele tanto amou. Ele sabia de antemão que ia perder a luta e que a violência agora generalizada iria vilipendiar o seu corpo de homem gay.
Também na visão sobre o papel da linguagem Pasolini reflete Rousseau. Para Pasolini, a unificação e padronização da língua italiana implicaram a morte dos dialetos que pululavam na Itália. O genocídio da cultura atingia também as formas de expressão popular. O povo foi despojado de sua língua e está mudo. Neste contexto, a ação política, para Pasolini, é uma luta contra a morte.
Para matar a morte, ele precisa eliminar o que está vivo: propõe, por exemplo, o fim da educação pública, a qual, segundo ele, entorpece e humilha os pobres. A busca da pureza perdida tem de ser radical (ou um retorno ao que há de mais tradicional).
Apesar do poder quase encantatório das utopias de Rousseau e Pasolini, parece-me que o mito da pureza é extremamente danoso no campo da ação política. Este mito cria defensores da pureza e não ativistas políticos. Gera ansiedade e inação, pois ninguém sabe exatamente no que consiste a idade da pureza. E recusa a sociedade como um todo, quando as mudanças políticas são sempre parciais e precárias, como a felicidade.
A busca da felicidade não é compatível com a imaginação de um mundo totalmente puro.
Heron Moura é mestre em Linguística (UFSC), doutor em Lingüística (Unicamp) e pós-doutor pela Sorbonne Nouvelle (2000). É professor Titular da UFSC desde 1990. Desenvolve pesquisas em semântica lexical, linguística cognitiva, metáfora e relação entre forma e sentido. É autor do livro A Linguagem não é transparente: um estudo sobre a relação entre forma e sentido (Ed. da UFSC, 2018).