A sonoridade florestal de Carol Miranda

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Qual a distância entre um som e uma pausa sonora? Entre você e seu maior ídolo? Qual o tempo certo das coincidências significativas, aquelas que Jung chamou de sincronicidade? Em 2012, quando a multi-instrumentista Carol Miranda estava às voltas com projetos musicais e a faculdade de música em Florianópolis, Robertinho Silva era uma referência musical importante, um ídolo só não mais distante porque a internet, ainda bem, encurta caminhos. Oito anos depois de pausas, encontros e reencontros, os dois lançam um álbum juntos, Pontapé Inicial, EP com seis músicas que parece ter sido feito para 2020: um espaço musical de paz em meio ao desequilíbrio provocado pela pandemia, uma expressão de fé, aquela fé mais pura que convida a acreditar em si, no próximo, na natureza e no poder transformador da arte. Disponível no Spotfy, Deezer e Apple Music

O carioca Robertinho Silva, 78 anos, é baterista e percussionista reconhecido como um dos definidores da linguagem brasileira para a bateria. Quarenta e seis anos separam os dois músicos. Carol, 32, é uma artista brilhante: para além do virtuosismo com que toca múltiplos instrumentos, ela faz música com tanta verdade e tanta entrega que emociona. Vê-la e ouvi-la tocar é uma experiência adorável.  

As histórias dos primeiros (des)encontros são hilárias, como a vez que ela e a mãe dirigiram algumas horas de Florianópolis até Curitiba para assistir a um show do mestre e foram barradas na entrada em razão do atraso, lá pelo ano 2012 ou 2013. Ou quando ela repetiu a aventura numa outra apresentação, dessa vez até São José dos Pinhais (PR), para mais uma vez pegar trânsito, chegar 15 minutos antes do fim do show e finalmente conhecê-lo. Foi quando ele autografou o Gordo, nome do primeiro Djembê de Carol.

Entre 2014 e 2015 a artista morou em Salvador, onde estudou no Centro de Formação em Artes, vinculado à Fundação Cultural do Estado da Bahia. Lá aprofundou conhecimento sobre ritmos brasileiros. Fez shows, tocou em trio elétrico, em teatro e fez amizade com mestres da percussão.  

— Nessa época fiquei sabendo de um show da Ana Paula da Silva com Robertinho em Fortaleza. Comprei uma passagem e fui. Ana fez as apresentações e fiquei direto com eles, assistindo à passagem de som, às apresentações. E ficamos amigos de Facebook — conta Carol.

Quando voltou a Florianópolis, em 2016, teve o insight: “vou visitar o Robertinho no Rio.” Mandou recado via Facebook e a resposta veio: “chega quando?”

— Antes de ir morri de medo, mas fui tão bem recebida por ele e pela companheira. Fiquei dois dias, mostrei vídeos, tocamos juntos. Quando eu era criança e adolescente, escutava muito Milton Nascimento [Robertinho Silva tocou com Milton por 26 anos]. Era rata de ficha técnica de CDs, lia e gostava de muitas das músicas que ele tocava, das coisas que fazia com a bateria e percussão. Gostava da alegria dele de tocar — detalha.

De ídolo, Robertinho passou a amigo. A ideia para um show e um álbum juntos já existia desde quando Carol passou alguns dias em Búzios, em 2016, onde o músico ensinava no Centro de Percussão Alternativa. O projeto começou a se concretizar mais ao final de 2017. Finalmente em 2018, depois de pausas sonoras e espera, o músico foi a Florianópolis para uma apresentação. Depois foi só uma questão de organizar agendas e gravaram juntos. O lançamento de Pontapé Inicial foi em março deste ano.

Festa na Floresta

Ao explicar o conceito do álbum, Carol Miranda vira uma contadora de histórias. São seis músicas, quatro com participação de Robertinho. Cada composição tem uma memória particular e a realização do trabalho, como um todo, é um resumo de fé. 

— Um dia eu estava lavando a louça e, vendo a água cair, fiz associação com um rio e com a fé: a fé como um rio que une duas margens. O lance é fé… Pensei muito nisso, ter fé um no outro. E estamos precisando muito, né? Nesse momento de pandemia — diz ela.

A música Festa na Floresta, por exemplo, surgiu a partir de um desses encontros sincrônicos. Num momento de dúvida em relação a seguir ou não a carreira na música, recebeu respostas positivas para shows e para trabalhar em escolas de música. Emocionada, voltando para casa no ônibus urbano, uma moça ao lado a reconheceu, perguntou se ela era a Ana Carolina, musicista. Foi como uma dessas viradas, como sinal do universo para seguir na caminhada.

— Respondi que sim, era eu. Fiquei tão feliz e vieram essas ideias percussivas, taquiticutáqui. Peguei o violão, botei uma harmonia e assim nasceu Festa na Floresta.

I Belong to God é uma composição feita quando morava em Salvador, numa república. Num banho para espairecer das confusões da casa se viu cantarolando para si mesma, percebendo a água batendo.

— E foi vindo uma melodia. Peguei o violão depois e saiu a música em inglês.  Acho que tive uma inspiração. É muito louca essa coisa de artista. John Coltrane uma vez se encontrou com Deus, foi para o quarto e fez o disco A Love Supreme. Um dos mais lindos — conta.

O EP evoca também a generosidade da natureza. A faixa Sonoridade Florestal tem sons da mata, feitos por Robertinho. E Carol fez ritmos no djembê. Música com a força da água, de feras correndo.

— Tem uma música que é para meu cachorro, o Floquinho. Quando ficou cego, certa vez o levei para passear e notei que ele confiava na guia, confiava em mim e continuava caminhando. Aquilo me emocionou muito. Acho que somos instrumentos. A gente é um canal para uma coisa muito importante. Somos mensageiros.

Lugar de Encantamento

Ana Paula da Silva foi o elo entre Robertinho e Carol Miranda. Cantora e compositora premiada, ela conheceu o instrumentista carioca durante oficinas de percussão ministradas por ele no Festival de Música de Itajaí, anos atrás. Essa história o próprio baterista conta, ele mal lembra o ano, mas recorda que no ano seguinte voltou a Santa Catarina e a cantora o convidou para gravar um disco. Viraram amigos e parceiros musicais. Anos depois, foi Ana quem o apresentou à Carol, no show em Fortaleza.

— A Carol vibra no lugar do encantamento. Isso ela passa quando está tocando, falando das composições que vem fazendo, sobre o que vem descobrindo. Admiro essa forma como ela se conecta com a música, como incorpora isso. Ela é carinhosa. E respeita a música — Ana Paula.

Robertinho da Silva concorda: “ela toca para a música”, disse, por telefone. O músico já tocou com Cauby Peixoto, gravou com Tom Jobim, Wagner Tiso, Dori Caymmi e Gilberto Gil. Por quase 30 anos tocou com Milton. Durante a gravação do álbum com a musicista de Florianópolis, conta que a desafiava a ser criativa:

— Ela teria que tocar uma música sozinha na bateria e só dizia “depois, depois”. Eu falei: vamos fazer agora, deixa a criatividade vir. E deu esse resultado, um trabalho lindo — comemora.

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