Por Teresa Siewerdt (TS) e Pablo Paniagua (PP)
Em meio ao período de isolamento social provocado pela pandemia de COVID-19, sentimos o quanto a proximidade e o vínculo físico entre as pessoas e as comunidades tornaram-se algo perigoso, controlado e até mesmo proibido, ao mesmo tempo em que percebemos o quanto esse convívio social nos é indispensável em todas suas ordens, pois é a partir dele que nos configuramos enquanto grupo e indivíduo. O momento atual nos exige um enfrentamento não apenas de um vírus potencialmente letal, mas também de uma catástrofe sanitária, médica, política, econômica, cultural e de direitos humanos que afeta a todos, alguns mais que outros, em uma escala global.
Quando atendemos ao convite para participar dessa coluna de textos e trocas de experiências sobre arte contemporânea brasileira, aceitamos enquanto artistas, pesquisadores, amigos, colegas, filhos, pais e cidadãos que de alguma forma, mesmo que isolados em casa, desejam praticar um modo de convivência, querem intervir, cooperar, compartilhar, entrar em contato, estar junto, conversar e trocar ideias que sentimos profundamente vitais e urgentes. Apresentamos aqui alguns trabalhos já realizados, outros inéditos e partes de projetos ainda em andamento. Não por acaso escolhemos o fogo como elemento e potência que transpassa este conjunto de trabalhos, pois sentimos que nesse tempo de isolamento o que mais nos falta é o calor que aquece e aproxima o grupo. O fogo que evocamos aqui é o mesmo que há milhares de anos nos ajuda a atravessar as noites e os tempos mais sombrios, e que desde os primeiros hominídeos segue aproximando os indivíduos, abrasando contatos, acendendo afetos, transformando matérias e afugentando as feras.
Fogo comum
Fogueiras sempre foram aglutinantes universais. Elas ainda nos demandam sobrevidas e urgências, enquanto agregam o grupo em um espaço ancestral de experiência e contato humano. Não é de hoje que alguns de nossos trabalhos se fazem da presença direta ou então da possibilidade do acontecimento do fogo. Em Fogo comum, uma ação performativa participativa que executamos pela primeira vez em julho de 2018, em frente à Casa do Povo, em São Paulo, propomos acender e manter acesas algumas fogueiras feitas dentro de latas. O recolhimento dos materiais para o fogo – madeiras, galhos, papéis e papelões – acontece preferencialmente no entorno do espaço previsto para a ação, envolvendo a participação de grupos específicos e também espontâneos, na criação e manutenção desses volumes de calor, abrigo, reunião e interação humana.
Fogo comum | 2018 | Casa do Povo, São Paulo, SP (Foto: Natália Rodovalho)
Essa ação evoca a presença do fogo enquanto elemento e dispositivo que instaura em sua volta uma espacialidade própria no mundo, enquanto mobiliza o envolvimento e a participação do outro. Nesse espaço de ações em torno do fogo, um tipo de convivência é acionada e traz consigo questões que implicam e estão sempre em fricção com seu tempo histórico, e é diante dele e das inquietações que desperta, que nos interessa agir, convocando alguns dados e usos do fogo, trazendo-os para o campo da arte em suas mais variadas potências.
Do exercício de preparar o fogo que acolhe, de modular a fumaça para que não espante nem disperse quem se aproxima ou passa pela rua, cuidando ainda para que o volume das chamas não exceda e destrua o que viemos a construir coletivamente – um espaço de calor, refúgio e colaboração – é deste conjunto de propósitos que se faz a ação Fogo comum, enquanto constitui e mobiliza modos colaborativos, usos impróprios, locais de comunhão e dissenso, na tarefa de manter a chama acesa, criando um fogo que resiste por muitas mãos. Esse é um dos trabalhos que nesse tempo de pandemia não poderia ser executado, pois acontece e depende de uma articulação e contato direto entre os participantes.
Ainda interessados nas possibilidades e condições que o fogo proporciona dentro do fazer artístico, nesses dias de isolamento, acionamos sua presença e potência através da queima de peças cerâmicas. As peças que fazemos são queimadas dentro de latas, usando serragem recolhida em marcenarias e também pedaços de madeiras que coletamos em caçambas encontradas pelas ruas. Trata-se de um processo semelhante ao praticado pelas populações mais antigas da história da humanidade, que faziam suas queimas de utensílios feitos de barro sem o uso de fornos ou aparelhos eletrônicos precisos para medir a temperatura do fogo. Nesse tipo de queima, os principais “equipamentos” são os sentidos corporais, a sensibilidade, o cuidado com as condições climáticas e dos materiais utilizados, e por fim, a experiência que vai se adquirindo a cada queima. Cada situação é única, e os resultados também. Tudo pode interferir nesse processo: a umidade do ar, as particularidades de cada argila, o tipo de madeira utilizada, o tempo de queima, a incidência do vento, a organização e o posicionamento das peças dentro da lata (buraco ou fogueira), a espessura e as características de cada peça, dentre outras e muitas variáveis possíveis que se deve levar em consideração.
Temos utilizado essa técnica de queima cerâmica movidos por interesses conjuntos e também particulares dentro de nossas pesquisas, que por vezes se misturam e se complementam. Em comum, temos o apreço pelo fogo e sua capacidade de fazer circular energias enquanto transformar materiais, gerando ainda luz, calor e sonoridades próprias. Sem uma perspectiva próxima do retorno à rotina de convívio social nos espaços onde trabalhamos e pesquisamos, tivemos que nos adaptar e fazer uso da queima cerâmica com fogo, um recurso que antes tínhamos como uma alternativa experimental apenas para uma parte de nossos processos ligados à cerâmica.
Desde então as queimas que viemos fazendo em latas se tornaram a nossa primeira opção, pois temos fácil acesso aos materiais necessários, a um custo quase zero, e que nos permite ter autonomia completa do processo, definindo onde, quando e como fazemos a queima. Além disso, as queimas têm sido um dos eventos mais esperados das nossas semanas de isolamento. Quase sempre avançamos a noite acompanhando e alimentado o fogo, enquanto conversamos, lembramos dos amigos, da família, escutamos música e bebemos, imaginando como será o futuro depois dessa pandemia. Não foram poucas as vezes que nos perguntamos o quanto esse tipo de reunião em torno do fogo já se repetiu ao longo da história. Próximos da fogueira nos sentimos conectados não somente com uma coletividade dentro do período que temos por atual, mas nos remetemos a uma natureza humana ancestral estendida até os tempos mais remotos.
Arquipélago
(PP): Há pouco mais de um ano venho pesquisando e utilizando o fogo na queima de peças cerâmicas. Esse interesse surgiu por conta de um núcleo de trabalhos que integra minha pesquisa de doutorado, intitulada Arquipélago. Nela, busco atender aos objetivos de uma pesquisa experimental em artes visuais, apresentando dados, reflexões e objetos produzidos/encontrados pela persona de um pesquisador/artista, embarcado em uma expedição de quatro anos rumo a um conjunto de ilhas em pleno estado de invenção e descoberta.
Objeto da série Breves ilhamentos | 2020 | Cerâmica | 3x7x2,5cm
As peças cerâmicas que venho realizando dentro da pesquisa estão relacionadas à confecção de réplicas ou simulações de instrumentos de navegação, representações de palavras ou acidentes geográficos que colaboram na apresentação das ilhas, além de conferir forma e volume para algumas partes específicas dos textos que venho escrevendo.
Registro de espectro e formação de volumes por existir | 2019 | Objetos diversos, cerâmica e desenho | dimensões variáveis
Na imagem acima, um conjunto da série em que utilizo diversos elementos recolhidos em múltiplos percursos, para formular e materializar seus volumes internos e externos através de desenhos e formas de argila. Galhos, penas, pedaços de madeira, fragmentos de rochas, papéis e outros vestígios são estudados a partir de algumas incógnitas:
(1) Qual seria o volume interno resultante do giro completo dos elementos em estudo?
(2) Como poderia ser vislumbrado o volume externo que escapa, abriga ou expande o vazio reverso do primeiro movimento?
(3) Esses cálculos, hipóteses e exercícios de materialização de formas que ainda não existem poderiam de alguma maneira contribuir no exercício de observar, imaginar, e reconhecer o mundo como um conjunto absolutamente múltiplo em coletividades, narrativas, identidades e formas de coabitar o mundo?
Ciência côncava / Ciência convexa | 2020 | Objetos cerâmicos | 1x7x7cm e 1x6x6 cm
Esses dois objetos acompanham o seguinte trecho de texto:
“Como se habita uma palavra? Como ressoná-la entre a fala, a escrita, os gestos e as propriedades da matéria? Por que algumas palavras escorrem vulcânicas e outras adormecem em geleiras? São algumas perguntas que se pode melhor responder através de uma ciência curva de bordas convexas, pois quando depositamos as dúvidas em seu topo – o ápice incógnito – as respostas tendem a descer e cair sempre em lugares diferentes, apontando uma resposta e um sem número de outras perguntas. É um tipo de experimento interminável. Não cabe fazê-lo em seu modo científico reverso, uma ciência curva de bordas côncavas, onde toda resposta desacelera em parábolas cada vez mais curtas, até repousar sobre um mesmo e imutável ponto inerte.”
Existe ainda uma série de artefatos cerâmicos que pretendo apresentar como descobertas arqueológicas encontradas em algumas das ilhas descritas dentro da narrativa da pesquisa. Posso adiantar que tais artefatos foram feitos por populações já desaparecidas dos sítios arqueológicos em que foram encontrados, e que tais objetos guardam conexões com o Brasil e o mundo em que vivemos hoje.
Colar de brasa | 2020 | objeto cerâmico, tiras de couro e carvão em brasa | dimensões variáveis
Na foto acima, um colar utilizado para manter uma porção de brasa acesa. Se imagina que esse tipo de colar poderia ser usado em rituais ou como instrumento de uso diário, utilizado pelos mantenedores do fogo dentro da estrutura social dos moradores da ilha Ágrafa, um das ilhas em estudo. Quando usado de forma correta e cuidadosa, o colar é capaz de conservar uma brasa acesa por bastante tempo, enquanto confere calor, conforto e uma sensação de abrigo. Pelas características comuns de alguns dos objetos encontrados até o momento, também seria possível que eles fossem utilizados como presente ou adorno dedicado à celebrar e manter vínculos e votos de afeto.
Colar de brasa | 2020 | objeto cerâmico, tiras de couro e carvão em brasa | dimensões variáveis
Covas, um conjunto de volumes dentro das práticas insurgentes ligadas à terra
(TS): Desde 2019 a maior parte de minha produção artística tem integrado uma pesquisa de doutorado ligada ao que chamo de práticas insurgentes ligadas à terra. São práticas, artísticas que têm a capacidade e a motivação de se rebelarem e problematizarem funções, usos e identidades atribuídas historicamente à terra. Nestas praticas pesquiso e busco propor outras formas de ocupação, aproximações, leituras e sensibilidades. Além disso essas práticas estão interessadas em considerar outros pontos de vida (e vista) em relação a apreciação da natureza, ao cultivo do solo e aos modos de interação com a terra, seja ela matéria, território, chão, espaço de construção de identidades onde a vida acontece.
Um pouco antes deste período de confinamento, entre os meses de fevereiro e março, realizei uma residência artística na École Nationale Superiéure d’Art de Dijon, na França. Lá pesquisei a relação histórica, cultural e econômica da cidade e de seus habitantes com a agricultura, atividade bastante proeminente na região. Realizei alguns trabalhos, com fotografia, apropriação de materiais relacionados ao cultivo e ao comércio de produtos agrícolas, vídeo e principalmente cerâmica. Nesta ocasião escolhi queimar partes das peças de cerâmica de um dos trabalhos usando a técnica da queima rústica, com serragem e madeira e um tonel metálico que ficava no pátio central da universidade. Quando acendi a fogueira, esta gerou uma situação surpreendente, revelando o quanto o fogo possui até os dias de hoje uma enorme capacidade de produzir um campo de aproximação. Alunos e funcionários se aproximaram para saber o que estava acontecendo. Por fim, o fogo propiciou essa atmosfera relacional, sem nenhuma formalidade ou regra pré-estabelecida, juntando ao seu redor corpos diversos que estiveram renuídos e interagindo durante o tempo da queima.
De volta ao Brasil, ao longo do período de isolamento, dei início a uma séria de placas cerâmicas que tenho chamado de Covas, sobre as quais modelo e recorto volumes que dialogam com imagens de sepulturas abertas preparadas para enterros em massa, como tem ocorrido em diversos lugares do mundo durante a pandemia. São imagens que creio, todos estão acompanhando em sites de notícias na internet, em tvs ou mídias impressas. Embora essas imagens pareçam distantes, enquanto estão planificadas em nossos aparelhos e mídias que acompanhamos, nas placas de cerâmica que venho desenvolvendo, elas ganham um volume tátil, térmico e próximo do corpo que as vai modelando e dando forma.
Sepulturas abertas no cemitério de Manaus, Brasil, e na cidade de Dnipro, Ucrânia. Fontes: South China Morning Post. (Frame de vídeo); e O Estadão, imagem de Sandro Pereira.
As imagens dessas centenas de sepulturas abertas causam um impacto absurdamente trágico, pois são buracos abertos em meio a urgência de enterrar corpos que poderiam ser o de qualquer um de nós ou de algum de nossos amigos ou familiares. São covas destinadas, em grande parte, para populações mais vulneráveis pela situação instalada pela pandemia, que foram pegas de surpresa. Em meio a comoção da perda, todos que permanecem vivos não podem se despedir apropriadamente dos seus entes queridos, por uma medida de prevenção ao contágio da COVID-19, sendo destituídos do direito de enterrar e cultuar seus mortos em um lugar mais apropriado.
Essas placas cerâmicas trazem um pouco de tudo isso que relatei até aqui, e ainda guardam outros sentimentos difíceis de descrever, que enquanto artista e pessoa que ainda se comove com os fatos e dores para além da minha própria segurança em meu isolamento. As Covas que preparo em argila são mais do que um objeto artístico, são também uma tentativa de relato a partir dos acontecimentos ocorridos durante a pandemia, uma topografia sensível que não pude deixar de produzir.
Cova (01) | 2020 | Placa de argila | Dimensão: 40×23,05×0,5cm
Cova (01) | 2020 | Detalhe | Placa de argila | Dimensão: 40×23,05×0,5cm
Cova (02) | 2020 | Placa de argila | Dimensão: 38,5x24x05 cm
Cova (02) | 2020 | Detalhe | Placa de argila | Dimensão: 38,5x24x05 cm
Teresa Siewerdt (1982). Rio do Sul/SC/Brasil. Vive e trabalha em São Paulo. Graduada em Artes Plásticas (UDESC); mestre em Poéticas Visuais (USP). Atualmente é doutoranda em Poéticas Visuais na USP, onde pesquisa práticas insurgentes ligadas à terra. https://teresasiewerdt.tumblr.com/
Pablo Paniagua (1976). Giruá/RS/Brasil. Vive e trabalha em Florianópolis e São Paulo. Graduado em bacharelado em Desenho e Plástica (UFSM); licenciatura em Artes Visuais (UDESC); mestre em Artes Visuais (UDESC); atualmente é doutorando em Artes Visuais na UDESC, pesquisando e atuando na produção de fotografia, vídeo, objeto, texto e publicações impressas em interações expositivas associadas. https://pablopaniaguaart.wixsite.com/pablopaniagua
Kamilla Nunes é artista, curadora independente, crítica de arte e professora, atualmente doutoranda no Programa de Pós-Graduação do Ceart/Udesc. Foi gestora do Espaço Embarcação, em Florianópolis [2015 a 2018], curadora do Espaço Cultural O Sítio [2015] e diretora do Instituto Meyer Filho [2010 a 2014]. Integrou o grupo de curadoria de Frestas Trienal de Artes [SESC, 2014, Sorocaba] e idealizou a Rede Artéria em parceria com o artista Bruno Vilela. É curadora do programa de exposições do Memorial Meyer Filho desde 2008 e autora do livro Espaços autônomos de arte contemporânea (2013). Atualmente pesquisa e ministra aulas sobre Arte Brasileira Contemporânea e está desenvolvendo um processo de criação que fricciona campos do conhecimento, como a psicanálise e o materialismo histórico.