O espectro, sua tromba e as minhas vitaminas

Compartilhe

Depois de algum tempo, um pequeno elefante começou a se formar ao lado da minha cama. Eu não me dei conta de imediato, porque, pequeno, não me causava incômodo, sequer me olhava direito – sempre à espreita, mas discreto. Uma bela criança, embora não brincasse nunca.

Como se formava lento, eu me esquecia do elefantinho porque eu tinha mais o que fazer do que observar que crescia. Eu trabalhava, estudava, tinha mais tarefas do que as horas do dia e me imaginava criando um mês a mais entre dois meses na ilusão de dar conta de tudo o que me comprometia a fazer.

Desenho de Patrícia Galelli

O danadinho foi crescendo. Como aquele velho clichê para a infância, a gente não vê o tempo passar e, de uma hora para outra, estava enorme. Pesado e abusado, pré-adolescente. Sem que eu desse confiança, subia na cama e não ficava mais em casa. Mas também não saía sozinho. Então aceitei levá-lo comigo, ao meu lado. E ele foi me conhecendo, aprendendo os meus passos, notando meus hábitos, meus pensamentos.

O fofo logo começou a mostrar a sua tirania e antes que eu me levantasse, ao acordar, estava agarrado nos meus cabelos. No solavanco da manhã, se acomodava como ninguém sobre os meus ombros. É claro que eu pedia para ele sair, mas não é fácil lidar com o espectro de um elefante que cresce a proporções imensuráveis.

Além do mais, ele começou a agir como se soubesse mais de mim do que eu mesma – o que não é difícil, vamos combinar…, nem para o espectro de um pequeno gato. Ele estava convivendo comigo há anos e, adulto, passei a chamá-lo de Roberto. Calçava meus tênis com o Roberto na cabeça, sentado de costas, com o rabo na minha testa; passava o café com o Roberto empinado, uma pata em cada ombro, prevendo o dia pela janela; a manteiga se derretia no caminho, enquanto Roberto conduzia com a tromba no meu cotovelo o movimento certeiro para passá-la na fatia de pão. Passei a comer o pão que o Roberto amanteigou!

Não era fácil lidar com o elefante – manhoso, melancólico, medroso. Roberto me fazia acreditar que cada novo dia seria o último. Uma vez tive uma crise alérgica e tossia a ponto de não precisar de abdominais – minha barriga estava com os músculos tinindo e já não aguentava. Uma tosse alérgica, simples, passaria com o xarope. Mas Roberto me fez acreditar que era o meu fim. Lembro de ter ligado para muita gente e enviado umas 30 mensagens naquela noite, todas demonstrando o meu amor a pais, a marido, às amigas e amigos. Roberto só me deixou dormir depois que eu me despedi de todos, sem, obviamente, contar que todo aquele afeto era a minha despedida.

No dia seguinte, eu, é evidente, não “acordei morta” como o Roberto previu. Mas ele me fez aceitar que tinha muita sorte de não ter acontecido nada apesar da iminência. E que o perigo poderia não ter me encontrado medicada e dormindo, mas à espreita, como Roberto cresceu ao meu lado, e estaria agora numa emboscada, numa bala perdida, num dos tropeções que eu sempre – destrambelhada que sou – dei nos meios fios, nas lajotas mal cimentadas, nos degraus desavisados; nos passos em falso; no excesso de pimenta; numa resposta de pavio curto; num voo rasante de gaivota enquanto eu visse o mar.

Pesado, abusado e persuasivo, Roberto não me deixava duvidar dessas coisas. E eu acreditava, porque sua sombra sobre mim era tão real quanto o ar que eu respirava. Roberto não é falso, ele age exatamente como é, com toda a sinceridade, com toda a verdade, honesto, franco, leal. E a dor que causa é tão real quanto o que ele diz. Roberto foi minha redoma de vidro – a que Sylvia Plath tão bem descreve em seu romance. Assim como é difícil quebrar ou sair da redoma envolta na cabeça, é extremamente complexo mandar Roberto embora.

É tanto tempo vivendo com o bicho que a gente se apega e ele vai guardando na barriga grande parte do que a gente é.

Mas, depois de algum tempo, resolvi fazer meu checkup anual no médico, sem consultar o Roberto. Sempre pulei de médico em médico, porque ele ditava qual a especialidade da vez que me levaria à morte. Quando soube, ficou furioso. Então eu expliquei a ele que dessa vez era um clínico geral além de geriatra e que era só rotina. Roberto achou tão engraçado eu ir num geriatra aos 30 anos que, pela primeira vez, não deu bola e nem palpite.

O elefante estava tão relaxado que eu consegui responder sozinha às perguntas do médico. “Pela manhã? Então, sinto que acordo com um elefante nas minhas costas”. O geriatra resolveu fazer exames e me dar para tomar o que chamou de “algumas vitaminas”. Roberto ria que se acabava da minha cara: “Vai tomar vitamina, Patrícia! Ginseng, B12, GinkoBiloba, Cálcio!”. Contrariada, eu apenas mostrei a receita na farmácia e comecei a tomar. Era uma vitamina controlada. Depois que eu li a bula, vi que não era exatamente uma vitamina e que se eu parasse por conta poderia dar muita reação adversa. Lógico que pensei em parar mesmo assim. Mas aí Roberto já tinha começado a diminuir e fazia tempo que eu não respirava tão aliviada.

Depois de dois anos das “vitaminas”, Roberto ficou pequeno de novo, uma gracinha. Ele continua me rondando, mas eu procuro não dar ouvidos e nem muito biscoito. Ele saiu dos meus ombros com uma parte importante de mim – até que eu não a recupere, decidi não mandá-lo embora. Ele não tem para onde ir e prefiro que Roberto não encontre outra casa nem outros ombros. Eu tenho lhe dado amor. E tenho ensinado Roberto a brincar.

Patrícia Galelli é escritora, jornalista e artista-pesquisadora. Publicou os livros Carne falsa (Editora da Casa, 2013), Cabeça de José (Editora Nave, 2014), que recebeu o Prêmio Elisabete Anderle de Incentivo à Cultura em 2013, da Fundação Catarinense de Cultura, Gávea (selo Formas Breves/e-galáxia, 2014) e o livro de artista Um bicho que (Miríade Edições), com primeira edição em 2015 e segunda edição em 2016. Em 2020, lança primeiro livro para crianças, Gato-átomo (Editora Nave, selo Nave-nina). É mestre em Processos Artísticos Contemporâneos (Udesc). Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo, com pesquisa sobre a relação do jornalismo e da literatura na produção de crônicas. Foto: Ayrton Cruz

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *