para Helder Martinovsky
nada da bacia hidrográfica de um homem chega ao mar, nada de um homem evapora. circuito contido, sistema pressionado. num rio não é assim. um rio se alimenta quando chove e corre como lhe convém o tempo. um rio não nasce do olho, mas do choro. um homem é sempre um organismo sem chuva.
dois rios de uma mesma nascente não são o mesmo nem são iguais. Tijucas, acanhado, assume velocidade aguda. Itajaí-açu, espaçoso, se espreguiça e espelha cidade. os dois seguem seus cursos, cada qual por uma topografia, mas chegam juntos, ainda que a quilômetros de distância. um homem, não. um homem nasce sozinho, ainda que divida o útero. e morre sozinho, ainda que divida a vida.
entre dois rios e um homem, músculo e musgo, sangue e água. veias, artérias, capilares. arroio, braço, desaguadouro. estratagemas do corpo de um ao leito dos outros, abandonos e ausências, ócios e sobras. a circulação não cessa, se molda sem tomar forma: no homem o tecido líquido se envolve em vasos linfáticos. nos rios a água degenera organismos insólitos, esbarra no pé de uma ponte, desliza barragem abaixo, tão exata e frouxa e intensa a água é. o homem bombeia o sangue de artéria em aorta, ou em arco, ou em veia, ou vice-versa. gasta nutriente, leva oxigênio, gás carbônico, uma limpeza completa ou se bloqueia. sem rompimento: fluxo da vida acesa do homem. essa vida que ele quer calma, mas que, decidida, não remedia nada.
a vida de um homem é sempre uma resistência de vida. estrada. porto. venda. ponte.
submerso no corpo do homem o ciclo perpétuo do sangue – até que o relógio pare e, impiedoso, o tempo se encarregue do fim da anatomia, uma ciência inteira que desliza ao subsolo dos rios. a foz do homem é seu mistério. um rio e um homem. quem habita quem? um rio invariavelmente evapora. cíclico perpétuo. a foz do rio é sua chegada. um rio tem sempre para onde ir e sabe.
a vida de rio é sempre uma sequência de vida. nascente. afluente. confluência. drenagem.
um rio nunca é o mesmo. nunca pesa, nunca analisa. traz em si uma dureza íntima, memória nebulosa ainda que despida. um homem também é único, embora nunca isento. é pesado, explora, examina. mas, apesar de pequeno, lhe cabe em algum lugar do corpo os dois rios inteiros. cabe no homem o mar.
o oceano.
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Escrevi esse texto a partir do trabalho “River film – cíclico perpétuo” (2011-2016), de Helder Martinovsky. Também fez parte do conjunto de textos para a exposição “RIVER FILM / pedra-fantasma / mar paradoxo”, de Helder Martinovsky e Raquel Stolf, no Museu da Imagem e do Som de Santa Catarina (MIS-SC), de julho a setembro de 2017.
Eu vou com os rios das imagens de Helder todas as vezes que relembro o ritmo daquelas águas. me refaço, finjo que não morro e que me cabe até o mar. escoo também e às vezes volto para minha foz, me faço uma vida de rio, começo de novo – erro melhor na vida de homem, água-resistência. é a pedra que se molda, afinal.
Mais sobre o trabalho de Helder Martinovsky, aqui.