Uma letra fraturada

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para a artista Daniela Avelar,
que no seu processo registrou
o “e” quebrado de gesso,
disparador deste texto.

Um “e” quebrado elimina o vínculo. Eu e nós que perdemos nossos abraços; nossos “ois” das esquinas; nossas falas e nossas escutas vivas a nos fazer portar um segredo; nossos jantares em casa – amontoados na cozinha, por menor que a cozinha seja. Perdemos a conjunção “e” materializada no toque e na troca singela de nossas arritmias quando pensávamos juntos sobre os rumos do país (hoje ainda mais desgovernado do que antes) e das nossas vidas.

A letra “e” de gesso, se conjunção sem estrutura dentro, se racha por aí ao primeiro toque de recolher de uma pandemia, ao menor afastamento, na ruptura causada pelo nosso modo desengonçado de gostar. E se espatifa até, como se quebra um copo sem querer, do jeito que parece que passou um mau agouro. Quantas situações e relacionamentos fizeram, ao menor descuido, uma conjunção “e” se debater no dentro da gente – uma bagunça só, qual uma roda punk que não atenua os hematomas dos atritos que vêm dos “nãos” que não dissemos; das dores que não expúnhamos; do amor que não soubemos dar.

Desenho de Patrícia Galelli

São os não-amados que merecem toda a candura de nossa gratidão nesses tempos de quarentena. Nenhuma conjunção se quebra nas relações com esses. É no amar que funciona um gerador autossuficiente de preocupações, angústias e aborrecimentos. Quer dizer, aqueles que não importam também são os que não importunam.

Porque quebra-se um “e” ao ter de assumir a exigência de dizer com todas as letras: não venha mais aqui, vizinha, vamos fazer uma vídeo-chamada: você toma o teu chimarrão que eu tomo o meu. Compreende-se muito bem que é o certo a fazer, mas com que dor o “e” do esôfago sai dessa conversa. E o celular toca, às vezes mais de uma vez por dia, mas ai que papo desbaratado: como já não vivemos grandes aventuras, não temos lá grandes assuntos. E vai dando uma fonofobia da voz-no-outro-lado que demora na tradução que tenta fazer do presente, vertendo o banal do dia na boca, na falação da existência isolada: é um tal de o que comeu, o que a tia da prima pensou da última fake news, o que o cachorro fez com a bolinha, que plantas nasceram ou morreram, as alfaces e os abacates que vão apodrecer porque não passa ninguém, que doem as pernas, e a cabeça dói dia sim e outro passa-depois-volta, a insônia e o assalto à geladeira.

Soma-se ao tanto de “e” quebrado nas pequenas desconsiderações dos amigos que se encaramujaram para suportar seus silêncios e suas solidões.

Processo do trabalho da artista Daniela Avelar

A balança da carência a pesar de um lado o tanto de afeto que tem aquele que toma a iniciativa de perguntar oi, cê tá vivo, precisa de alguma coisa?; e de outro o tanto de estima do que apenas responde. A balança da escassez a comparar o que não se pesa por quilo: as tristezas, as ausências, as paranoias. O estado psíquico à mostra como um rei nu infantil nos obrigando a assistir suas cobranças e pirraças; seus embustes; a criança malcriada que carregamos a dar um sopapo na criança machucada; a criança que abandonamos agora a nos olhar de frente.

E ainda o “e” despedaçado de nossas fraturas. O que escondemos nesse dentro da gente, que quebramos ao meio antes mesmo de passar para fora. Que medo é esse de mostrar que não estamos prontos, minha gente! Para que tanto esforço de esconder as próprias rachaduras? A gente vai seguindo juntos, a passos de formiga. Se não somos de gesso, como o “e” que deixa de quebrar assim que o arame passa a segurar a matéria branca, o que no nosso dentro, esse dentro que não é de carne – e, portanto, não podem ser os ossos –, evitaria que quebrássemos tanto, para além da aparência, para além da soberba, para além do egoísmo: o que nos segura de verdade? Qual é o “e” que refaz o vínculo?

Patrícia Galelli é escritora, jornalista e artista-pesquisadora. Publicou os livros Carne falsa (Editora da Casa, 2013), Cabeça de José (Editora Nave, 2014), que recebeu o Prêmio Elisabete Anderle de Incentivo à Cultura em 2013, da Fundação Catarinense de Cultura, Gávea (selo Formas Breves/e-galáxia, 2014) e o livro de artista Um bicho que (Miríade Edições), com primeira edição em 2015 e segunda edição em 2016. Em 2020, lança primeiro livro para crianças, Gato-átomo (Editora Nave, selo Nave-nina). É mestre em Processos Artísticos Contemporâneos (Udesc). Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo, com pesquisa sobre a relação do jornalismo e da literatura na produção de crônicas. Foto: Ayrton Cruz

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