Conheça o projeto É da Nossa Cor e as lições sobre resistência

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Em Santa Catarina, Estado onde os brancos têm o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) 11,9% maior do que os negros, conforme relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil divulgado em 2017, não é de se espantar que quem nasce com a pele preta se veja no papel de coadjuvante, e não protagonista.

Ser negro não é fácil no Brasil. Tornar-se negro, no entanto, ainda que um processo doloroso (todos os referenciais são brancos, afinal), é libertador, urgente e fundamental. É exatamente empoderar crianças no processo de se tornarem negras um dos propósitos do É da Nossa Cor, iniciativa social que existe desde 2014 em Florianópolis.

O projeto é realizado no Pastinho, comunidade no alto do Mont Serrat,  remanescente de quilombo localizado no Maciço do Morro da Cruz, região central da Capital. Trabalha junto a crianças e adolescentes de 3 a 16 anos os conceitos de identidade, protagonismo e autoestima por meio da cultura afro-brasileira, entendo-a como uma cosmovisão e não modalidade cultural.

A ideia de empoderar essas crianças é evidente: além de criar oportunidades, propõe-se a ressignificar a concepção vigente que define pessoas negras como econômica, política e socialmente inferiores e submissos.

Foto: É da Nossa Cor / Divulgação

— A gente não ensina a cultura, a gente vive a cultura. Então a dança vem junto à percussão que vem junto ao canto. Tudo isso conta uma história, fala de um lugar político, um lugar existencial. Toda a cultura afro-brasileira utiliza valores afro-civilizatórios e isso é onde a gente se sustenta e busca sustentar cada ação, respeitando valores como o axé, circularidade, ludicidade, ancestralidade, religiosidade, corporeidade e musicalidade — diz a psicóloga Mathizy Pinheiro, coordenadora da iniciativa ao lado do Gestor de Negócios e Rapper Djavan Nascimento.

Mathizy Pinheiro e Djavan Nascimento

A cultura é um meio para trabalhar pontos importantes: a partir da noção de negritude, no É da Nossa Cor se busca ressignificar tudo o que se construiu sobre a população negra e mostrar a potência disso. Até porque, toda a cultura popular brasileira muito bebe da cultura africana e afro-diaspórica.

— Tudo isso a gente pensa como algo de enfrentamento ao racismo: afinal, é um corpo ligado a uma moral, a um intelecto, a uma cultura… Como se fosse menos que outros corpos. É ressignificar esse corpo e dizer que ele pode ser o que ele quiser, considerando que ele parte de um lugar histórico e político. E a gente já trabalha isto desde cedo com as crianças de forma que percebam o poder que elas têm — diz Mathizy.

O nome do projeto é inspirado no canto de capoeira Aue Aue Aue (É Da Nossa Cor)

Se eu fosse loira de olhos azuis, seria diferente?

Mathizy Pinheiro tinha recém-conhecido a comunidade do Mont Serrat. Era então moradora da comunidade do Morro do Céu, também localizada no Maciço do Morro da Cruz. E foram as crianças que primeiro se aproximaram. Descobriram que ela dançava e fazia teatro. Descobriram os equipamentos de som e os instrumentos de percussão de Djavan Nascimento. Propuseram coreografias, mostraram o funk.

— A gente tinha saído de um grupo de dança afro e logo pensamos em criar um projeto para as crianças. Nesse processo, elas começaram a se abrir comigo e traziam coisas referentes a ser negro: “eu não quero ser assim”, “se pudesse escolher, seria loira…” Naquele momento voltei à minha infância. Eu pensava: “se eu fosse exatamente igual, só que loira e de olhos azuis, mas assim, igualzinha, as oportunidades seriam diferentes”.

Foto: É da Nossa Cor / 2019

Em tentando dar respostas para questões complexas, como racismo ou consciência negra, o projeto vem desde então incentivando as crianças a construírem a própria história  por meio da música, da dança, das histórias, do cinema.

— O impacto já se vê na autoestima e no empoderamento diante das situações ligadas ao racismo, que era o nosso foco no começo. O racismo pega no acesso às oportunidades e direitos. Além de oportunizar, precisamos empoderar pessoas para que percebam e aproveitem as oportunidades — analisa a coordenadora.

A iniciativa passou a ter então outras frentes, como parcerias com cursos de pré-vestibular.

Oficina de contação de histórias com o Coletivo NEGA

— Para nós, um grande ganho hoje é as crianças falarem que têm sonhos. Que elas pensam em ser profissionais disso ou daquilo, que querem ir para universidade. A partir de agora queremos trabalhar em outros níveis, como o acesso a oportunidades e direitos. Precisamos de alternativas, mas principalmente que esse público se veja parte disso — diz Mathizy.

O tornar-se negro

A repercussão entre as crianças do bairro foi uma das primeiras vitórias do projeto: elas se reconhecerem enquanto negras e acharam isso bom.

— Isso é muito difícil, porque geralmente esse processo de se tornar negro é sofrido — diz Mathizy Pinheiro.

“Tornar-se negro” é uma referência à obra de mesmo nome publicado em 1983 pela psiquiatra, psicanalista e escritora Neusa Santos Souza . No livro, ela fala de todo o processo que vive a pessoa negra quando está buscando espaço de ascensão – e espaço de ascensão pode ser entendido até mesmo como simplesmente buscar escola, já que até pouquíssimo tempo atrás não se tinha alfabetização para os negros e as escolas de samba é que cumpriam esse papel.

No É da Nossa Cor, a cultura é um meio para trabalhar valores e reconstruir a história. Foto: É da Nossa Cor / Divulgação

— Não tinha espaço nas escolas para pessoas negras. Buscar esses lugares, que são de embranquecimento, é dolorido. Então a gente parte de um ideal do branco, em que a gente acha que para ser aceito tem que se aproximar disso. E quando nos damos conta de que não podemos, sofremos. E desenvolvemos processos psicológicos difíceis. Esse livro é forte e fala de como esse processo gera sofrimento, mas tornar-se negro é um processo histórico, político e cultural.

Sustentabilidade da iniciativa

O projeto É da Nossa Cor hoje ainda não tem uma estrutura própria e conta com espaços físicos da comunidade.

— Infelizmente a gente não tem conseguido editais.  É um mercado que ainda não conseguimos adentrar. Então estamos tentando via empreendedorismo social — desabafa a psicóloga.

Djavan Nascimento ensinando percussão

No começo de 2018 o projeto foi contemplado pelo Programa Conexão de Impacto, do Instituto Nexxera e realizado com apoio do Sebrae/SC. O programa de aceleração de negócios de impacto social capacita e realiza mentorias com empreendedores sociais e tem ajudado os coordenadores do É da Nossa Cor a pensar diferentes possibilidades de manutenção e sustentabilidade da iniciativa.

Outras oportunidades e parcerias surgiram, como a realizada em 2018 com o Studio Balaclava e que tem auxiliado na construção da identidade visual. O propósito é promover fontes de renda para manter  ações sociais da iniciativa. A Marca Social tem previsão de lançamento para março ou abril de 2020.

A equipe também cresceu e atualmente conta com voluntários e parceiros que acreditam na força do coletivo.

História de vida e de luta

Mathizy Pinheiro ingressou na Faculdade de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) aos 17 anos, na primeira turma de ações afirmativas. Gostava de Direito, ela conta, mas foi estudar Psicologia porque queria entender as razões pelas quais as pessoas são injustas.

—Eu sabia que, entrando por cotas ou não, seria vista da mesma forma. As coisas são muito veladas. Eu pensava que tudo estava desconexo com o que era e aprendi a sobreviver. Tive que esquecer que era negra para continuar. No decorrer do curso, encontrei grupos que me fizeram entender o papel das ações afirmativas, meu papel ali dentro e que eu estava fazendo parte de uma conquista que o movimento negro teve.

Mathizy Pinheiro: referência para crianças

Durante a experiência acadêmica, ela atuou em áreas jurídicas e da educação dentro da Psicologia. Recorda uma época em que trabalhava com jovens que compartilhavam a mesma idade, mas pertenciam a realidades distintas: enquanto no estágio numa empresa júnior de engenharia mecânica atuava com planejamento de carreira, em projetos sociais ajudava a construir projetos de vida.

— E na verdade eu nem trabalhava com modelos de Psicologia, eu tinha que criar. Porque os modelos que tinha não serviam para aquele público. A psicologia não pensava aquele publico — conta.

Depois de formada começou a se envolver mais e passou a trabalhar com projetos sociais

— E de tanto procurar, as crianças é que me acharam. O É da Nossa Cor me formou. E o tornar-se negra foi nesse período. Lembro de quando eu tirei o mega hair enorme e cortei todo o meu cabelo, bem curtinho. As crianças acharam esquisito, porque a maioria já relaxa os fios desde cedo. Ficaram uma semana em silêncio. Aí eu dizia: o cabelo não é duro. Toca. Olha como é macio.

Aulas de dança Foto: Arquivo – 2015 / É da Nossa Cor

Você sabia?

Em 2003 foi promulgada a lei 11.645, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira dentro das disciplinas que já fazem parte das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio.

Saiba mais sobre a iniciativa:

Instagram: @edanossacor
Facebook: @projetoedanossacor
Site www.edanossacor.com.br
Contato pelo e-mail contato@edanossacor.com.br

 

Como Contribuir:

Neste link é possível fazer doações espontâneas para manter as atividades do projeto.

Apoio Emergencial: o É da Nossa Cor criou um Fundo de Apoio Emergencial para famílias afetadas pela pandemia do novo coronavírus. Até o momento estão cadastradas 74 famílias com necessidades de alimentos e itens de higiene e limpeza. Contribuições podem ser feitas neste link

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