Cena de Não Olhe Pra Mim, de Carolina Alves. Reprodução
Por Pedro MC
Dois filmes de cineastas recém-formados chamam a atenção para um gesto de volta do olhar. São A Morte Branca do Feiticeiro Negro, de Rodrigo Ribeiro (Cinema Unisul), e Não Olhe Pra Mim, de Carolina Alves (Cinema UFSC).
O gesto, penso, na contramão de desenvolvimento de produtos, mira a narrativa, em processo sobre registros de memórias. Ambos operam dispositivos de contraste sobre o tempo e o fluxo da paisagem.
O filme de Rodrigo Ribeiro vem traçando trajetória admirável no circuito de festivais neste ano fatídico de 2020. Filme de arquivo, de ensaio e de estilo, partido de uma “certa fantasmagoria negra que representasse um sentimento de total deslocamento e invisibilização do ser negro em diáspora” (Entrevista de Juliano Gomes na Revista Cinética).
O filme de Carolina Alves emana um corpo de sentimento em cada plano, na câmera estrategicamente colocada no muro que separa as casas de sua mãe e de sua avó. A obra revela-se na ancestralidade presente, no dia a dia do lar, em lugares que tem maquiagem e óculos/lentes como objetos de cena não encenados.
O filme de Ribeiro, por sua vez, recria corpo por meio de ancestralidade que rasga o tempo, sem uma única cena encenada, nem diálogo, brotado de um ambiente sonoro implosivo.
Rodrigo dá voz a Timóteo sem uma voz gravada. Depois de assistir ao filme, a sensação é de precisar ver de novo. Em que ponto que a gente foi levado a pensar tantos assuntos em tão pouco tempo, 10 min.
Gêneros de cinema suscitados, o horror, o documentário, será que uma foto de arquivo de família pode ser vista de novo da mesma forma, agora? E de quem é a família retratada?
O filme de Carolina é a sua própria voz, que nos conduz a pensar sobre tantos assuntos em tão não tão pouco tempo, 68 min.
Se tem nexo, em risco, é a invisibilidade que nos faz um país sem registro de imagens, nem as imagens do cotidiano das pequenas, grandes cidades, nem as imagens do passado e do presente.
Carolina Alves e Rodrigo Ribeiro
Cinemateca Brasileira sitiada por militares, Ministério da Cultura submisso a espúrios e obscuros agentes de Turismo, agenda política da destruição, em meio ao aumento do compartilhamento de imagens de si mesmos.
— O que é a imagem? — pergunta Carolina Alves.
Inflação das redes sociais, sem tempo pra leitura, irmão.
Ribeiro tem muita munição. Carolina não lançou o filme ainda. Conversei rapidamente online com os dois, sobre o que se pode chamar de volta do olhar.
ENTREVISTA COM CAROLINA ALVES
Pedro MC: Gostaria de compartilhar umas questões sobre a forma e a linguagem. A primeira é que por eu ter gostado do seu filme, não quer dizer que vou escrever com complacência, apesar de ter achado que é um trabalho em construção que tem muito conteúdo.
Carolina Alves: Sim, entendo que um texto crítico precisa avaliar questões mais complexas que o gosto pessoal e trabalhar bastante a questão da linguagem. Fico curiosa para ler. Como você disse, é um filme que está em construção e ler o que alguém escreveu já é um indicativo de como ele pode ser lido e como é recebido. Gosto mais ainda quando é algo mais pessoal, que flui mesmo.
Como foi a elaboração do texto?
Carolina Alves: Elaborei o texto depois do corte. Foi a parte mais difícil. Apesar de toda a dificuldade da filmagem, o texto foi o último elemento que construí. Visto que não tinha roteiro pronto, tudo foi se unindo e fazendo sentido pela montagem.
Fiz um texto único primeiro, um ensaio sobre o filme todo, e depois fui pensando em cenas específicas e nas surpresas que ocorreram ao olhar as filmagens novamente. Foi um trabalho de dois anos e ainda não fiz os ajustes que pediram na banca, por isso, não divulguei como deveria.
Acho que um trabalho é massa quando atravessa questões como um corte diagonal, sabe quando se fala que um filme tem “muita potência”, eu não acredito em potência como justificativa, acho que potência tá na ação, e teu filme tem muito “não-ação”.
Carolina Alves: Sim, tem essa questão das interrupções das ações e das repetições excessivas. Pensei bastante sobre isso.
A não-ação tensa e rica de significantes, acho que a leitura de um filme com a abordagem como o seu não é fácil, pensando num grande público. Praticamente força a olhar pra dentro de si, para a própria família, e você passa para outro plano, de refletir sobre a construção da imagem, então é quase um tríptico de espelhos.
Vejo figuras de linguagem que você está usando, que podem virar uma lista de denominações, como sinédoque, não sei se estou certo (vou pesquisar) de oxímoro, que é o jogo de paroxismos, quando você fala para não olhar para você mesma. Lembra o prisma do Deleuze, nesse jogo de espelhos.
Carolina Alves: Engraçado que o filme começou com um texto que era justamente sobre espelhos, lá em 2017. Depois foi fluindo em outras camadas, mas a ideia do espelhamento se manteve porque o filme é um processo, então tudo parece se orientar com a ideia da imagem, da câmera, da própria filmagem.
Entretanto, penso muito na devolução da imagem, do compartilhar e se manter ao lado e não refletir somente. Neste aspecto, o olhar é para si, para o familiar (e o que também é estranho) e para as mulheres. Acho importante salientar essa questão do espelho, pois falar de reflexo pode ser entendido como um decalque, o que não é aquilo que penso sobre fazer cinema.
Entendo essas tensões como os atravessamentos do real: a vida, o cinema, a família, o gênero. São pontos que se unem ao elaborar um plano e persistir nele com o olhar. Sempre uma nova criação com suas multiplicidades. E tem muito Deleuze mesmo, como você comentou sobre o prisma.
O dispositivo do seu doc é muito evidente, então não sei se acredito que o sentido se deu só pela montagem, acho que o posicionamento da câmera, esse diálogo direto com Chantal Akerman, você tem um pressuposto.
Carolina Alves: Minha maior influência foi a Chantal mesmo. A montagem foi criando toda uma construção de muro, de casa permeável, mas no próprio enquadramento eu já queria esse sentir e isso a Chantal me mostrou. Ela é muito lembrada pela dureza do formalismo e gosto muito dessa composição, entretanto tem uma passagem e movimento em seus planos pictóricos. São essas paisagens que me arrebataram nela e me fizeram pensar no muro instável entre o terreno da minha vó e mãe como um elemento importante em cena.
O muro tem um sentido foucaultiano que é muito além da instituição, ou da crítica à disciplina, sendo a família a “instituição” assim por dizer, mas o que nota-se é a ausência de figura masculina, e nos 04min seu texto diz “eu comento que a ideia inicial era fazer um filme sobre minha mãe e minha vó, mas o que?”, e aparece o muro como um signo narrativo, mas paradoxalmente, não separa.
Carolina Alves: A questão do muro surgiu com a discussão do livro da Gloria Anzaldua sobre fronteiras, na verdade. Queria que (o muro) fosse além de uma representação ou de uma metáfora, como se pode interpretar, e que tivesse um sentido prático e vívido. Se colocam coisas em cima do muro para dar essa noção do existente, tocável. Mas o muro separa e não separa. Assim como a câmera, queria que os campos fossem permeáveis.
A ausência da figura masculina se deu pelo fazer um filme com mulheres e pelo olhar para vida privada e do lar.
É importante que essa ausência seja sentida e pensada. Não quis afirmar que a casa seja um espaço das mulheres, mas permitir que a casa não seja somente um lugar doloroso. Existe um bloqueio, o trabalho sem remuneração, mas também é um espaço com diversos furos, com possíveis fugas e encontros das outras mulheres. Podemos afirmar que o lar é um lugar violento que se deve abandonar, porém o lar também está em si, em seu corpo e abandonar pode ser impossível.
São tensões que penso e trago para o filme, sendo que o muro projeta este espaço, dando um certo limite até. Queria também que ele não fosse fixo, um ponto no terreno imutável e por isso, evidencio a questão de ser prático e móvel. O muro é bastante afetivo nesse sentido já que se localiza materialmente no meio de duas casas familiares, separa vida pública e privada e tem uma força própria.
Talvez acho que todas respostas às minhas perguntas estão no seu texto em OFF. Parece que os signos materiais foram encomendados: óculos, maquiagem, muro. Será que é tudo inventado?
Carolina Alves: (risos). Não sei dizer, a questão que eu falo sobre mentir, sobre documentar a si mesmo depois de tudo isso me faz ter esse questionamento. É uma pergunta que me perseguiu bastante ao estar filmando minha família, será que é somente meu olhar? É uma pergunta difícil que deve afetar todo mundo ao começar no documentário e no ensaio mais intimista.
Seu filme se passa em Imbituba, no litoral. Você usou imagens do Centro de Florianópolis? Aqueles tapumes pixados do Largo da Alfândega?
Carolina Alves: Isso, quando estavam construindo. (pausa).
Você tem alguma dúvida sobre seu trabalho?
Carolina Alves: Eu acho que não consigo responder nenhuma pergunta que fiz durante o filme, inclusive. Existe o receio de falar sobre ele abertamente por conta disso.
Posso usar essa conversa pelo whatsapp para as perguntas e respostas?
Carolina Alves: Você consegue incluir fluindo no texto? Porque tenho receio de ficar com perguntas com respostas porque eu falei pouco sobre (risos), acho que fica bacana se for entrecortado.
Agora que ouvi a música final, “tenho mais perguntas que respostas” (“20 Anos Blues”, 1976).
Carolina Alves: A música da Elis foi um achado pra esse filme. Ela se repete, inclusive. Queria que até a artista da música acontecesse mais de uma vez.
Nota do entrevistador: “depois de uma hora um som não diegético, com muros pela cidade, muro desgastado pelo tempo, suspenso com palafitas, com a letra “tenho mais de vinte muros / o sangue jorra pelos furos, pelas veias de um jornal … as raízes da marquise … ontem de manhã quando acordei, olhei a vida e me espantei / tenho mais de vinte anos.”
Deve ser massa presenciar a reação da sua mãe na sala de cinema, quando for projetado. Já foi feita uma projeção em espaço público com a presença da família?
Carolina Alves: Em público não, só vimos em casa porque minha banca de TCC foi online. Minha vó e minha mãe gostaram bastante. Minha vó ficou chocada em como ela anda com a vassoura (risos). Gosto muito de como foi natural o processo de filmagem, mesmo com diversos conflitos do aparato e como é reconfortante o modo que elas acolheram o filme na exibição.
E como enviar seu filme para festivais? está pronto?
Carolina Alves: Ainda não, tem alterações da banca e preciso rever a questão dos direitos autorais da música.
O que de fato estou pensando sobre seu filme é que não é projetado como um produto, nem pela forma nem pela técnica, me parece um processo de transformação de sua percepção sobre o lar, mesmo que o lar não perceba sua própria transformação de olhar.
Carolina Alves: Sim, eu acho que ele tem uma forma bastante lacunar e isto se sente na experiência. Pelo menos, foi isso que procurei inspirada pela forma ensaística. Acredito que nem a produção final é fechada, mas sempre indo para um outro lugar, para um fora.
É uma escrita de si que se constrói com o outro-máquina também. A arquitetura do lar é algo que eu pensei bastante e sigo querendo pesquisar. É uma chave importante para se pensar o filme porque é na casa que se desenvolve tudo e quando ela não está em cena, ela existe enquanto deslocamento.
Fiquei bastante inspirada no Escrever, da Marguerite Duras. Ela fala sobre o processo de escrever na solidão da casa. Mais que o olhar, acho que pode falar no sentir. Porque olhar ainda é uma espécie de privilégio, poder somente olhar. Toda a demora que se tem na espera do olhar é uma tentativa dessa quebra do prazer voyeurístico, então acho que o olhar se transforma no sentir, no tocar.
Pensar no tocar, no habitar uma cena já é uma maneira de se pensar a arquitetura, a casa. Logo, imagino que o pensamento de cinema se entrecruza com a questão da morada em sua experiência estética.
Será que sentir demandaria uma resposta? Você faz perguntas, me parece, um olhar que questiona e reflete na ilha de edição. Há uma certa passividade como na cena da oração antes do almoço, na mesa não tem seu prato. Indica uma câmera afastada, com um som que vem da edição, ao menos o OFF, não aparece você em algum espelho, por isso olhar, olhar.
Carolina Alves: Acho que sentir não demanda, porém é um contato, uma reação. E concordo com as suas colocações, mas acho que existe um corpo no filme que não fica somente no olhar.
Quando digo passividade não é uma câmera de registro sem sujeito, é passividade quase como um filme de Ozu que enquadra de forma e composição com uma intenção. A dúvida que tenho, é se você usa suas referências já as explicando que são referências ou a fluidez do seu olhar foi sentido mais na edição do que na filmagem. A pergunta é: se você ficou horas filmando ou já sabia o que extrair de cada momento quase como numa repetição litúrgica do cotidiano.
Carolina Alves: Foi sentida na edição, eu fiquei horas e horas filmando. Por mais que eu tivesse as referências de Chantal, por exemplo, não fazia sentido filmar uma teoria ou uma técnica. Não queria aplicar um pensamento, mas pensar com o cinema.
A repetição foi algo que percebi depois de filmar, na verdade. Fiz diversos testes antes da filmagem – essa em que eu avisei que estava filmando. Meus testes eram de deixar a câmera sozinha, era de capturar áudios mais furtivos. Então, eu percebi que tinha muita repetição, diálogos que pareciam não ir para lugar nenhum, em um primeiro momento. A partir disso que fui definindo referência, uma técnica de repetição em que se sente o tempo, o espaço, o corpo. Essa aproximação com o processo que definiu uma forma fílmica. No texto, questiono então, toda essa construção que parte da cineasta para o outro.
Quando você fala de corpo, é um corpo fílmico? Porque não vejo um corpo subjetivo, no sentido de alguém que explica onde é tal lugar, dando respostas, mas criando um mosaico de referências da memória em cima de um registro que tem o gesto do registro (não é um material de acervo de família, um foundfootage), e a cidade, o lugar, a geografia vai aparecendo aos poucos. Esse corpo que você fala que não fica só no olhar é sentir exatamente o que? Se você chega com equipamento de filmagem e registro de som, tem uma intenção. Uma maquinação pra sentir. Como falei no começo da nossa conversa, parece que uma boa parte é encenada no seu filme, com uns toques de metalinguagem como a maquiagem e a ótica, os óculos, o muro. Esse sentido você buscou como a ideia pra filmar?
Carolina Alves: É isso mesmo, é uma subjetivação. É sentir o tempo, o espaço. Tudo isso é uma prática que envolve um corpo. É um corpo do filme mas também é o corpo de quem assiste, como se houvesse reações em ambos.
Não quis ir pra metalinguagem não, a questão da ótica foi coincidência do trabalho da minha mãe. Quando me liguei nisso, senti um toque metalinguístico mas não foi intencional. O muro tem essa ligação com a câmera, porém não quis que tivesse o elemento metalinguístico ou a metáfora da relação familiar. O muro realmente existe no terreno, ele é concreto e vira uma passagem, um obstáculo. É algo vivo, além do textual.
Você avisou a sua mãe, sua vó e sua bisavó que seriam personagens de um filme?
Carolina Alves: Como eu fiz muitos testes, elas acabaram se acostumando mesmo. Em várias filmagens, elas parecem perceber que existia a câmera no instante.
Quando você fala que “existe a necessidade latente de criar significados sobre qualquer imagem” existe em você como autora do registro e da montagem, e “queria que você não tivesse me visto” e “nunca tivesse abandonado o quadro”, é para a pessoa que acende um cigarro na frente do mercado público? Ou para outra pessoa?
Carolina Alves: Sim, eu falo isso para os registros cotidianos, familiares em que vou acabar filmando. A gente sempre vai buscando significados mesmo quando essa procura não exista inicialmente, é bem difícil se livrar disso e acho importante questionar esse caminho… Todas essas perguntas surgiram muito fortemente quando assisti Remontagem da Trinh T. Minh-ha.
A fala foi para a pessoa que acende o cigarro mesmo. Na cena, ela me percebe, me comprimenta e sai do quadro. Foi um momento especial na filmagem e achei importante manter essa cumplicidade que também se esgota.
Massa. Obrigado Carol. Você fez um lindo filme.
ENTREVISTA RODRIGO RIBEIRO
Pedro MC: Como foi a elaboração do texto?
Rodrigo Ribeiro: Essa preciosa carta foi a última peça desse emaranhado de vestígios que é A Morte Branca do Feiticeiro Negro. A chegada da carta veio ao encontro do meu desejo em trabalhar com texto em tela, mas nesse caso específico não foi isento de alguns conflitos e problematizações – afinal utilizar uma carta de suicídio em um filme é algo extremamente delicado.
Nossas diretrizes eram que deveria haver um profundo respeito na abordagem, que houvesse delicadeza e tato para conseguir expor isso de forma digna e não exploratória, leviana. Tecnicamente, o desafio era saber como bem apresentar as palavras de Timóteo ao longo da obra, pensando numa cadência que privilegiasse a força de seus dizeres frase-a-frase, para que cada palavra tivesse o devido impacto cravado na tela em sintonia com som + imagem.
Na entrevista com Juliano Gomes da Revista Cinética, você fala da pesquisa de 40 filmes de domínio público, com um corte de 28 e no final selecionados 09. Com a trajetória do seu curta, você pensa em reeditar o corte com as 28 ou 40 filmes pesquisados? A pergunta é se A Morte Branca do Feiticeiro Negro está completa como obra. Pois seus curtas se ligam esteticamente, e com a repercussão deste, muda a forma com que você vai fazer o próximo? Tipo, tá chovendo oferta e verba? (risos).
Rodrigo Ribeiro: Tenho mais interesse na experimentação do que na repetição. Acredito que futuros e eventuais desdobramentos ocorreriam naturalmente, num diálogo fluido e livre entre obras. Mas pela quantidade de dor e assombro envolvido, durante todo o penoso processo que foi a gestação desse filme, não tenho certeza que gostaria de revisitar tão cedo esses porões da mente.
Seu filme me trouxe muito a ideia de Bachelard sobre a imaginação poética de um coletivo consciente, uma imaginação dinâmica com predominância de um elemento alquímico do ar, notadamente na trilha sonora. A montagem parece vibrar o tátil com o batimento da película de acervo numa sincronicidade que desmaterializa esse suporte de filme e verticaliza o tempo, com muita intensidade. No plano em que você faz um movimento de tilt e uma árvore gigante em meio às névoas parece conduzir nosso olhar para o ar, para o céu, para a nuvem. Parece que você nos faz acessar uma memória em tempo real.
Dá vontade de assistir mais, mesmo que o assombro assuste, mas aquela atmosfera parece que está ali, e vc consegue acessar como matéria fílmica.
Rodrigo Ribeiro: Interessante. Esse filme foi todo concebido para, de algum modo, conseguir exprimir e conjugar uma temporalidade própria. Filmar a ausência, dar forma e matéria ao invisível e invisibilizados, é algo completamente desafiador.
O itinerário das locações tentou capturar suas atmosferas sem caracterizações muito precisas de tempo e espaço, onde o registro imagético deveria sugerir, instigar, criar sensações que pudessem trazer uma poética tão singela quanto perturbadora, que fosse possível gerar reflexão sobre as omissões e silêncios que habitam ruínas e calabouços da nossa história através de uma certa sinestesia.
Alguns espaços oferecem testemunho sobre a vida dos escravizados, não enquanto uma mera abstração de um conceito vago, mas como uma grande materialidade pungente capaz de nos comunicar algo sobre sua existência naquele período. Buscamos elementos em lugares que pudessem transmitir sensações e ao mesmo tempo tivessem autonomia de contar sua história.
Observar e sentir o mundo, num viés contemplativo, por vezes é mais contundente do que projetar imagens sobre ele.
Achei este seu curta, junto com Vaga Carne de Grace Passô, um dos melhores trabalhos de cinema no Brasil 2020. O que você achou dessa obra? E outros filmes que indica?
Rodrigo Ribeiro: Vaga Carne é ótimo, sem dúvida. Grace esbanja talento em tudo que faz, é um verdadeiro fenômeno. Acabou que esse fatídico ano foi muito prolífico, apesar de todo empenho e força contrária desse governo imoral.
2020 teve ótimos lançamentos, poderia citar tantos… mas destaco dois, um curta e um longa: entre os curtas me marcou muito Entre Nós e o Mundo, trabalho forte e sensível de Fábio Rodrigo; e o sublime Luz nos Trópicos, de Paula Gaitán: uma das obras cinematográficas mais incríveis dos últimos tempos, sem exagero. Clássico instantâneo.
Para finalizar, encontrei por acaso este seu filme compartilhado num grupo de torrents, com a mais alta recomendação. Acha que é de alguma forma um reconhecimento ter o torrent de um curta-metragem brasileiro entre os trending topics?
Rodrigo Ribeiro: Acho que é, no mínimo, curioso. Nos mais diversos níveis.
Saiba mais
Filme Não Olhe Pra Mim (Carolina Alves, 2020, SC, 68 min)
Filme A Morte Branca do Feiticeiro Negro (Rodrigo Ribeiro, 2020, SC, 10 min)
Agenda de dezembro
- Griot Festival de Cinema Negro Contemporâneo (até 20/12)
- Festival de Brasília (até 20/12)
- CineCipó – Festival do Filme Insurgente (de 24 a 31/12)
Agenda de janeiro
Pedro MC é cineasta. Está finalizando o média-metragem Tua Boca é Fogo, é programador da Cinemática e produtor do Festival de Cinema Fantástico Floripa Que Horror!, entre outros.