Por Dariene Pasternak
A agenda do cineasta brasileiro João Paulo Miranda Maria teria sido agitada no mês de maio. No dia 12, ele seria um dos diretores que chegaria à Croisette para a maior vitrine do cinema mundial. O filme dele, Casa de Antiguidades, está entre os 56 longas anunciados da 73ª edição do Festival de Cannes, cancelada em 2020 por conta da pandemia. Para manter o compromisso com o cinema, apesar da ausência das estreias concorridas no balneário francês, a organização divulgou no início de junho os selecionados deste ano, que ganharam um selo de aprovação.
Com filmagens em Santa Catarina, no município de Treze Tílias, Casa de Antiguidades permeia terrenos sensíveis de temas atuais, como o racismo, o conservadorismo, a polarização política e a memória. Na história, um homem mais velho, vivido pelo ator Antonio Pitanga, começa a trabalhar em uma moderna fábrica de laticínios numa cidade interiorana fictícia no Sul do Brasil. Sem identificação com o lugar, as pessoas e a sociedade, ele se aproxima dos animais e de sua ancestralidade.
— Mesmo sem ter a competição em si, já é um feito histórico estar na Seleção Oficial de Cannes com o primeiro longa — reconhece Miranda Maria, de 37 anos, em conversa em primeira mão em Santa Catarina com a Revista Gulliver.
Além dele, a brasileira Lillah Halla também entrou nesta edição do festival com o curta-metragem Menarca, na Semana de Crítica, seção paralela do evento.
Miranda Maria tem uma trajetória singular e considerada um fenômeno no meio. Nascido no interior paulista, em Porto Feliz, estudou cinema na universidade Estácio RJ e fez mestrado na Unicamp. No município de Rio Claro, próximo de Campinas, fundou um grupo de prática de cinema, o Kino-Olho, que saiu produzindo filmes que entraram em festivais.
Em 2015, ele enviou um DVD sem encarte e apenas escrito à caneta, como ele próprio conta, para o Festival de Cannes. O curta Command Action foi então selecionado para a Semana da Crítica. No ano seguinte, Miranda Maria inscreve A Moça que Dançou com o Diabo, financiado por uma rifa, que é escolhido para a programação oficial do festival e ainda ganha menção especial do júri. Meninas Formicida, que é seu primeiro curta profissional, já com apoio do canal de televisão Arte France e Centre Nacional du Cinema et de L’imageAnimée, percorre uma longa trajetória de festivais, a começar por Veneza.
Casa de Antiguidades começou a ser desenvolvido em 2015, no laboratório NEXT Step Lab (parceria entre Semana da Crítica de Cannes e Torino Film Lab) e depois, em 2017, no programa Cinéfondation em Paris, residência artística para jovens estrangeiros, vinculado ao Festival de Cannes, que tem entre as suas práticas suporte para a escrita de roteiro.
Ao divulgar a seleção de 2020, por conta da ausência da exibição, o festival não submeteu as obras às mostras tradicionais do festival, como Competição e Um Certo Olhar, e sim, incluiu-as em categorias mais gerais, algo como ‘diretores habituais’ (que já estiveram em vários anos),‘recém-chegados’, entre outros. O longa de João Paulo figura no grupode ‘primeiros filmes’ – que conta com nomes como o do ator Viggo Mortensen, Suzanne Lindon, filha dos atores Sandrine Kiberlain e Vincent Lindon, e da cineasta armena Nora Martirosyan, por exemplo.
A proposta da organização é lançar para a crítica e para a opinião a tarefa de assistir, reordenar e premiar “entre aspas” essa seleção.
Sem a janela tradicional de estreia, Casa de Antiguidades não terá o tapete vermelho, mas, anuncia o diretor, “cairá feito uma bomba neste momento tão urgente”. Agora é acompanhar o percurso que o filme fará fora do país e quando chegará aqui.
Confira a entrevista com João Paulo Miranda feita por e-mail:
Você pode me contar um pouco da sua trajetória e de como começou a filmar?
Meus pais trabalhavam em restaurante no interior de São Paulo. Enquanto eu os ajudava no balcão, gostava de desenhar observando os clientes, gostava muito de quadrinhos. Uma vez me pediram para desenhar um Batman e para espanto geral desenhei um herói muito gordo e asqueroso, que segurava pela perna um trombadinha franzino. Anos depois ganhei uma câmera Nikon velha de meu pai e comecei fotografar as ruas, tinha muito interesse no que as pessoas ignoravam, o que chamei de “Cinema Caipira”. Os meus heróis são aqueles que a maioria das pessoas julgaria fora de um padrão, que vulgarmente eram vistos como cafonas, bregas etc. Diziam pra mim que era impossível encontrar algo cinematográfico e belo naquela cidade (Rio Claro, SP) e acabei formando um coletivo (Kino-Olho) para justamente provar o contrário, almejando algo além de um clichê ou tendência. Foram anos de amadurecimento do olhar a partir de filmes-ensaios que propunha entre os participantes do coletivo.
Casa de Antiguidades foi maturado dentro de laboratórios. Como foi esse processo?
Desde 2015 já escrevia o roteiro e comecei a participar de laboratórios como o NEXT Step Lab (parceria entre Semana da Crítica de Cannes e Torino FilmLab) e depois, em 2017, fui selecionado para continuar esse desenvolvimento na residência artística Cinéfondation, em Paris. Somando essas experiências, são anos de escrita e reescrita para chegar à versão final, filmada em julho de 2019. A experiência da residência nos faz ter retornos sobre a escrita e a oportunidade de conhecer possíveis parceiros, como foi o caso da coprodutora Maneki Films, que conheci no Lab de 2015.
Como chegou ao tema de Casa de Antiguidades e como você o define, tendo em vista que toca um dos assuntos mais sensíveis do momento no mundo?
Já tinha toda história na cabeça em 2015 e surgiu como um sonho, onde um homem de idade encontrava uma casa inabitada, cheia de objetos de memórias de um povo. Depois comecei a trazer vários aspectos pessoais, da minha cidade (Rio Claro), que foi o berço do integralismo de Plínio Salgado, toda minha vivência num lugar conservador, em escola tradicional alemã. Meu pai era atirador esportivo, onde convivi e competia com diferentes armas e calibre desde pequeno. E certas experiências fortes como, por exemplo, quando apresentei minha primeira namorada na festa de meu aniversário em família. Ela era negra e ao beijá-la, no momento dos parabéns, minha avó quis interromper limpando minha boca em frente dos convidados… Foram muitas coisas vividas e que não poderia mais guardar só para mim.
E a escolha de Santa Catarina para as filmagens? Você já conhecia o Estado ou alguma cidade?
Conhecia pouco de Santa Catarina e precisava encontrar uma cidade de colônia europeia, tradicional, um lugar diferente do que conhecemos de Brasil. Visitei várias cidades até encontrar algumas na área oeste do Estado. Fiz essa viagem de carro com minha família, sem rumo certo, durante um mês inteiro.
A decisão de Antonio Pitanga para o papel foi sua ou teve alguma sugestão da produção francesa? Aliás, como a produção Brasil-França trabalhou com você no longa?
Desde o início sempre imaginei Antonio Pitanga para o protagonista Cristovam, mas não sabia se ele aceitaria. Foi até uma surpresa para os parceiros, pois em nenhum momento descrevia no roteiro como um homem negro velho, mas um brasileiro do interior do Brasil, cheio de marcas do tempo em seu corpo, carregando muita memória oculta em sua rigidez… Depois de comunicar a produção, fui conhecer pessoalmente Pitanga, para saber se teria o interesse de mergulhar neste personagem visceral que exigiria muito dele em vários aspectos. Foi o maior presente de batismo meu, ter ele aceitado este desafio. Tenho certeza que todos se surpreenderão com sua interpretação única e histórica neste filme.
Como será a distribuição do filme aqui no Brasil e outros países?
No Brasil já contamos com a Distribuidora Pandora Filmes e o Canal Brasil. No exterior temos a Sales Celluloid Dreams, que organiza a distribuição internacional.
Se estivesse em Cannes agora você certamente estaria com uma superagenda. Vocês têm estratégias para Casa de Antiguidades fazer barulho fora e aqui no Brasil?
Estamos apenas começando e ainda dará muito o que falar. O filme é inédito e faremos estreias em grandes festivais a partir do segundo semestre. Não vejo a hora de exibi-lo, pois cairá feito uma bomba neste momento tão urgente!
Como foi entrar em Cannes com Command Action em 2015 e repetir a dose com A Moça que Dançou com o Diabo? E agora com um longa-metragem?
Command Action foi o primeiro filme dentro do coletivo que fizemos almejando uma produção de dias e uma certa profissionalização, e com a maior cara de pau enviamos para maior festival do mundo através de um disco DVD, sem encarte, apenas escrito à caneta. Foi selecionado para a competição da Mostra Semana da Crítica do Festival de Cannes. Com aquela síndrome de vira-lata do interior, caipira, queria saber se foi sorte de principiante ou se estava no caminho certo. Aí fizemos A Moça que dançou com o Diabo, que entrou no ano seguinte na competição oficial de Cannes e ganhei o premio especial do júri. Desde 2015, com o primeiro curta, comecei a sentir a responsabilidade e participar de diferentes festivais e encontros do mercado, mas queria encarar o maior desafio: o do longa. Estar na competição de Cannes com curta já é algo difícil e em anos consecutivos mais raro, porém mais difícil ainda seria entrar para uma competição oficial com o primeiro longa. Costumo dizer que agora é uma briga de “cachorros grandes”, não como nos curtas que lidamos com nomes novos, mas agora com nomes já consagrados. E conseguir um espaço ali para um iniciante é algo praticamente impossível. Assim, mesmo sem ter a competição em si, já é um feito histórico estar na Seleção Oficial de Cannes com o primeiro longa.
Você está morando na França com a família? Como está sendo essa experiência? E a pandemia na sua vida e como vê o Brasil?
Estou aqui na França desde março de 2019 para toda fase de pós-produção do longa e agora começo a desenvolver novos projetos. Aqui, além do valor à cultura, temos uma estrutura incrível do estado. A pandemia também chegou forte aqui e estávamos muito preocupados no momento do pico, mas agora, depois de várias semanas de diminuição do contágio, vemos a luz no fim do túnel surgindo. O dia de amanhã será de mudanças, de oportunidade para um enfrentamento. Acredito que estamos próximos de uma revolução que pede comoção de toda sociedade em diversos setores, principalmente o da cultura. Quero contribuir neste campo e ajudar o Brasil a ter esperança para lutar.
Dariene Pasternak é jornalista especialista em cultura.