Quando conheceu a obra de Timothy Snyder, em 2016, o pesquisador e professor da UFSC Fábio Lopes da Silva ficou impressionado com as hipóteses do historiador sobre política contemporânea. Snyder, autor de títulos como Terras de Sangue: a Europa entre Hitler e Stalin (2010), Terra Negra: o Holocausto como História e Advertência (2015), e Sobre a Tirania: vinte lições do século 20 para o presente (2017) — esse último um best-seller internacional —, já era célebre nos círculos acadêmicos como historiador da Europa moderna e aceitou um projeto de pesquisa proposto pelo professor de Florianópolis: em 2018, supervisionou uma pesquisa sobre os escritos de Primo Levi (1919-1987), escritor e químico italiano sobrevivente de Auschwitz.
Depois de uma primeira experiência em 2018, Fábio Lopes da Silva voltou à Universidade de Yale, nos Estados Unidos, para mais uma interlocução com o intelectual norte-americano no ano passado. Dessa vez seguindo os rastros sobre as origens do sadopopulismo, termo cunhado por Snyder para explicar a forma emergente de administrar Estados e populações.
O resultado se vê no livro Sadopopulismo: de Putin a Bolsonaro, um ensaio sobre a política brasileira contemporânea recém-lançado pela Editora Insular. Em entrevista à Revista Gulliver, Lopes da Silva fala sobre a pesquisa, hipóteses e como essa forma de governo chegou ao Brasil.
No livro, você propõe traçar a origem do sadopopulismo. De onde vem esse conceito e o que significa?
O conceito de sadopopulismo foi elaborado por um grande historiador e intelectual público contemporâneo: Timothy Snyder, da Universidade de Yale. Esse autor é bem conhecido pelo best-seller internacional Sobre a Tirania, lançado no Brasil em 2017.
Sadopopulismo, para Snyder, é uma forma emergente de administrar Estados e populações. O que o distingue é o fato de que o governante opera a partir da ideia de um mundo sem futuro, de crise eterna, de um estado permanente de emergência. Ora, como é possível governar assim? Eis a resposta: em lugar de tentar de algum modo socorrer as pessoas, o líder político mantém as coisas como estão ou mesmo toma medidas que sabidamente prejudicam a maioria imensa da população, inclusive os seus próprios eleitores. Só que ao mesmo tempo ele oferece uma válvula de escape para estes últimos. Sobretudo por meio da internet, martela à exaustão uma mesma mensagem a seu grupo de apoiadores: ‘Sim, a existência é um vale de lágrimas, e nada posso fazer para mudar isso. Mas resta o consolo de saber que outros sofrem mais do que nós e de que podemos fazê-los sofrer. Eu os autorizo a infligir sofrimento em adversários, a agredi-los, a odiá-los, a desprezá-los. E digo mais: quando vocês os maltratarem, não estarão verdadeiramente os atacando, mas se protegendo, porque eles estão sempre prontos a roubar nossas almas, a destruir nossa inocência, nossa pureza, e tudo que construímos e em que acreditamos’. Daí o radical -sado em sadopopulismo: como no sadismo, essa maneira de atuar na política se baseia na administração deliberada da dor (e na gestão dos afetos que disso resultam).
Snyder propõe a noção de sadopopulismo para compreender o que acontece atualmente na Rússia, na União Europeia e nos Estados Unidos. Ele desenvolve um longo argumento cujo sentido é mostrar que, turbinado pelo clima de profunda desilusão vigente na Rússia pós-soviética, o sadopopulismo nasceu do ventre do governo Pútin. Moscou, para Snyder, é “a capital mundial da ausência de futuro”, e de lá exporta o sadopopulismo para outros lugares, a começar pelos Estados Unidos de Donald Trump. De minha parte, procuro indicar que o sadopopulismo chegou ao Brasil via Bolsonaro, surfando na onda do trumpismo.
Quando essa ideia de sadopopulismo começou a tomar forma no Brasil? Por que deixamos isso acontecer?
O sadopopulismo opera a partir da ideia de crise permanente, de um mundo sem futuro, que eternamente retorna ao mesmo ponto, à mesma dor, à mesma ansiedade, ao mesmo estado de emergência. A ideia vendida é a de que tudo está mal, e não é possível fazer nada, a não ser agredir inimigos, odiá-los, afirmar a própria superioridade em face deles e tomá-los como ameaça à própria pureza. O ponto a ser percebido, no entanto, é que essa atitude é, sim, potencializada por Bolsonaro & Cia., mas já estava há algum tempo presente em germe no comportamento das pessoas em geral, inclusive os progressistas. Basta ver como, ainda antes da ascensão do bolsonarismo, as pessoas agiam nas redes sociais: nesses espaços, salvo engano, tudo frequentemente já se passava um pouco como se todos fossem inocentes e estivessem sob ameaça de algum inimigo (os corruptos, a esquerda, a direita, os gays etc.). Já havia no ar uma espécie de espectro de que todo dia era a véspera do fim do mundo. O que Bolsonaro faz – e aí está, por assim dizer, a sua maior capacidade política – é nos atrair cada vez mais para esse ambiente niilista, no qual ele desde sempre viveu e se sente estranhamente confortável. Bolsonaro é um corpo fraco e ressentido que tem o dom de desvitalizar os outros. É um administrador de emoções desagradáveis.
Cito um exemplo bem recente a fim de mostrar o quanto bolsonaristas e não-bolsonaristas estamos tomados pela ideia de crise sem fim. Outro dia mandei a amigos a notícia de que, em Florianópolis, ninguém morria de Covid há um mês. Todas as respostas vieram com reservas, mas a campeã foi a de uma pessoa que dizia temer que a informação fizesse a população relaxar e ir às ruas. Se bem a entendi, ela estava com medo de uma boa noticia (ou ao menos de uma notícia muitíssimo melhor do que a que projetávamos há um mês ou dois meses). Isso é realmente estranho, concorda?
Como chegamos a esse ponto? Como nos tornamos vulneráveis a sadopopulistas? A tese de Snyder — com a qual concordo completamente —é a de que o que vivemos hoje está diretamente ligado ao otimismo pueril que experimentamos por aproximadamente trinta anos, a partir da queda do comunismo soviético. Em boa parte do planeta, apesar de algumas vozes dissonantes, a derrocada da URSS fez com que a maioria de nós aceitasse a ideia de que as democracias liberais eram o sentido da história, um caminho inevitável, que se imporia de qualquer maneira. Quem matou essa charada foi o filósofo esloveno Slavoj Zizek. Diz ele que mesmo os antigos radicais não apresentavam alternativas, limitando-se, quando muito, a defender propostas de melhorar ou humanizar o sistema. No frigir dos ovos, prevaleceu entre nós a famosa tese — formulada por Francis Fukuyama, em 1989 — de que estávamos no limiar do fim da História. “É fácil rir de Fukuyama, da história de Fukuyama”, escrevia acertadamente Zizek há cerca de dez anos, “mas o ethos dominante hoje é ‘fukuyamiano’: o capitalismo democrático-liberal é aceito como a fórmula da melhor sociedade possível que finalmente se encontrou – só resta torná-lo mais justo, mais tolerante etc.”
O lulismo foi parte disso, não? O que chamo de pax lulista – o pacto em que alegadamente todos ganhavam o seu quinhão – deu a muitos a tola convicção de que tínhamos desvendado o segredo da história, e agora era só deixar o barco correr: o futuro, na pior das hipóteses, seria mais do mesmo. Só que a história não acaba, e é cheia surpresas. Vieram crises, inclusive no Brasil — e, com elas, a desilusão. Da certeza de que tudo estava bem, e não era preciso fazer nada, passamos à ideia de que tudo está mal, e não se pode fazer nada. Apesar de parecerem opostas, essas duas fórmulas convergem em um ponto crucial: nos dois casos, pouco fazemos na vida civil e política – no máximo, postagens no Twitter.
A irresponsabilidade na cena pública é o denominador comum entre elas. E foi em torno do eixo dessa irresponsabilidade – da qual ainda relutamos em sair, apesar de tudo – que giramos da primeira posição para a segunda. Bolsonaro se beneficia disso. Mas ele é o que é: para repetir o que eu já disse, ele é um administrador de emoções metido em um corpo frágil. Seu trunfo é o estado mental e cognitivo em que estamos e que ele sabe agravar terrivelmente. Bem sei que não é fácil deixar a clausura de certos esquemas cognitivos. Mas, para além de impedimentos mentais, o que há para ser feito, do ponto de vista objetivo, é bem mais trivial do que parece. Quem deu a linha foi aquele imigrante haitiano que confrontou Bolsonaro pessoalmente. O presidente ficou visivelmente em pânico, incapaz de reagir, balbuciando frases vazias de sentido. É como se começa a sair da caverna do niilismo. Simples assim.
Por que você acha que uma parcela grande da população se sente confortável diante de questões como racismo, desigualdade social e com o próprio negacionismo científico, evidente durante a pandemia?
O crescimento do negacionismo, o racismo e todas as formas horrendas de ódio e ignorância a que assistimos é filho de um mundo duro, difícil, e da tendência atribuir as coisas ruins a bodes expiatórios. Isso não é novo, claro. Já aconteceu muitas outras vezes. O que é nova é a ideia de que a questão não é exercer esse ódio no seio de uma utopia nojenta qualquer: vencer, matar, subjugar ou escravizar os inimigos imaginados. É simplesmente permanecer na crise, criá-la, exasperá-la, deixá-la agir, enquanto se afirma a própria inocência e se descarrega medos, angústias e ansiedades em algum adversário odiado, real ou imaginário. Uma espécie de fascismo passivo, eu diria, se isso não fosse uma contradição em termos.
No título, você traça propõe uma linha do tempo: de Putin a Bolsonaro. O que esses dois líderes têm em comum?
Para reduzir a uma única frase uma questão que abordo longamente no livro, eis o que eu diria: ambos operam a partir da ideia de crise permanente e de que a tarefa do governante, portanto, não é resolvê-la mas dar vazão para a ansiedade que essa crise gera nas pessoas.
O livro foi escrito a partir de uma experiência sua em Yale. Como foi a interlocução com Snyder? Em que período isso aconteceu e o que mudou na cena política brasileira entre o começo e o fim do livro?
Conheci a obra de Snyder em 2016, por meio de seus livros e dezenas de palestras incríveis no YouTube. Ele já era célebre nos círculos acadêmicos como historiador da Europa moderna (principalmente do Leste europeu) e do Holocausto. Na época, eu estava trabalhando com os escritos de Primo Levi, e enxerguei compatibilidades entre, por um lado, aspectos fundamentais do que o escritor italiano diz sobre sua experiência em Auschwitz e, por outro, o modo como Timothy Snyder compreende o Holocausto. Decidi escrever para Snyder, do nada, me apresentando e propondo um projeto de pesquisa sobre Levi a ser desenvolvido sob sua supervisão em Yale. Ele me pediu detalhes, e, ao fim e ao cabo, simplesmente disse que sim, eu poderia ir ao seu encontro. Fui em 2018.
Nessa época, ele já estava começando a abordar política contemporânea, e eu fiquei impressionado com suas hipóteses a respeito do assunto. Segui o rastro delas. Como já tínhamos um diálogo anterior, tudo ficou mais fácil. Em 2019, voltei por 15 dias a Yale só para discutir com ele o livro que agora lancei.
Snyder é uma máquina intelectual quase inverossímil: trabalha com arquivos nas nove línguas (seis delas do Leste europeu) em que é capaz de ler. Recomendo vivamente seus livros, todos publicados no Brasil (inclusive o último, chamado Na Contramão da Liberdade, de 2018).
Quanto à sua pergunta sobre o que mudou na vida social do início de minha relação com Snyder até agora, bem, acho que nada propriamente se modificou. Apenas agravou-se, aprofundou-se. Mas acrescento a essa observação uma nota discretamente otimista: assim como a história não acabou com o fim da URSS (ao contrário do que Fukutyama e a maioria de nós, por anos, acreditamos), ela segue se desenrolando neste exato momento. A ideia de que não há alternativas ou futuro a construir é simplesmente ridícula – em 1989, agora e sempre.
Você é professor de literatura e transita por uma porção de lugares de expressão: de ensaios literários a roteiro de cinema e TV. Por que esse ensaio sobre política?
Prefiro ser chamado apenas de ‘professor’, sem nenhum adendo do tipo ‘de Linguística’ ou ‘de Literatura’. Quando eu escrevia regularmente para o extinto DC Cultura, era assim que assinava meus ensaios: ‘Fábio Lopes da Silva é professor da UFSC’, só. É isto o que tento ser: um professor, um intelectual público. Alguém que busca dialogar com colegas e alunos, mas também – na medida do possível, e por diferentes meios – com as pessoas em geral. Dirijo-me sempre ‘a quem interessar possa’, como se costuma dizer no início de cartas abertas.
Os que procuramos ser intelectuais públicos não nos sentimos proprietários de nenhum objeto, ao menos quando se trata das coisas humanas, sociais, históricas. Tratamos esses objetos precisamente como coisas públicas, o que significa dizer que tampouco concedemos a quem quer seja o direito de ser proprietário definitivo de algum objeto. Tenho 53 anos, estudei muito, dialoguei um monte, tentei aprender sempre. O livro é fruto disso. Um esforço de intervenção. Há muitos destinos possíveis para ele: a indiferença, a crítica feroz, o fracasso e até um improvabilíssimo sucesso. Fiz o melhor que pude para expor com clareza uma hipótese e demonstrá-la ‘a quem interessar possa’. Procurei ser rigoroso: o livro inclui 164 notas, com referências bibliográficas, fontes de todas as informações citadas e comentários adicionais (estão no fim do texto, para não interromper a leitura). O resto é com os leitores, se leitores houver. Seja o que eles quiserem.
Sadopopulismo: de Putin a Bolsonaro (2020), de Fábio Lopes da Silva. Série Novos Rumos V1. Editora Insular. 140 páginas. R$ 39. À venda aqui. Disponível também na versão digital.