Em resposta à entrevista do prefeito Gean Loureiro sobre a situação da cultura em Florianópolis para a Revista Gulliver, o Conselho Municipal de Política Cultural de Florianópolis (CMPCF) divulgou uma nota de esclarecimento acerca de alguns pontos mencionados pelo gestor da Capital. A entidade enumerou questões como demandas emergenciais para a cultura negadas durante a pandemia e enfatizou o não comprometimento com políticas públicas para o setor: “temos uma gestão voltada à satisfação de “políticas de governo” em detrimento às necessárias “políticas de Estado” pactuadas nas Conferências de Cultura e consolidadas no Plano Municipal de Cultura de Florianópolis”.
— Cabe ao Conselho fiscalizar e cobrar por ações efetivas e estruturantes para a cultura no município, sempre seguindo com o cumprimento das leis, diretrizes e Plano de Cultura, resultado de um trabalho árduo e coletivo. Nós, como conselho, preferimos o caminho do diálogo, da proposição e da crítica construtiva com verdade e transparência sempre. Nós da cultura convivemos 24 horas por dia e temos a real noção do que acontece. É na nossa pele que sentimos o impacto da falta de políticas para o setor e, com o fator da pandemia, essa dificuldade se multiplica. Tudo o que queremos agora é trazer e ler boas notícias, botar a mão na massa e trabalhar com dignidade — afirma Cristina Villar, presidente do CMPCF.
Para Marco Vasques, conselheiro da Setorial Permanente de Teatro ao lado de Elaine Sallas, distribuir cestas básicas é importante nesse momento, mas ressalta que os trabalhadores da cultura estão sem trabalho e sem perspectiva de voltar a exercer o ofício.
— O prefeito sequer conhece todos os espaços culturais da cidade. Conhece apenas os espaços culturais que gere, muito mal gerido, diga-se de passagem. Quem passar pelo Centrinho da Lagoa pode perceber que o Casarão da Lagoa e a Casa das Máquinas, que já foram sala de teatro, estão invisitáveis. E para concluir, não é função do município produzir cultura e arte, mas criar ambiente para que os artistas possam criar — diz.
Foto: Casarão Bento Silvério, na Lagoa da Conceição, tem projeto para reforma. Crédito PMF
Nota de esclarecimento do CMPCF na íntegra:
O Conselho Municipal de Política Cultural de Florianópolis (CMPCF) vem a público esclarecer alguns pontos da entrevista concedida pelo Prefeito da cidade à Revista Gulliver, publicada em 27 de maio de 2020.
Nesta entrevista, o prefeito discorreu a respeito da relação de sua gestão com o setor cultural de Florianópolis, cujas demandas se agravaram, ainda mais, no contexto da pandemia de Covid-19, tendo em vista que o setor foi um dos primeiros a ter suas atividades suspensas e será um dos últimos a retomá-las.
Como algumas das declarações do Prefeito nesta entrevista se mostraram controversas e inverídicas, cabe a este Conselho o esclarecimento de suas versões de alguns fatos e pontos citados, a saber:
1. “A prefeitura organizou um comitê de crise da cultura que está sistematizando, com a ajuda do Conselho Municipal de Cultura, dados estatísticos sobre as condições das setoriais que compõem o Conselho. E, a partir desses dados, encaminhar (sic) propostas emergenciais para que possa atender toda a classe artística.”
Essa declaração é falsa, haja vista que o Conselho Municipal de Política Cultural de Florianópolis (CMPCF), em reunião do dia 01/04/2020, deliberou a respeito da criação de um Comitê de Crise e que este, juntamente com as setoriais que compõem o CMPCF, levantou dados e organizou demandas e ações emergenciais para o setor da cultura em Florianópolis. Tais demandas e ações emergenciais elencadas foram enviadas à Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes, Secretaria de Cultura, Esporte e Juventude e Prefeitura Municipal de Florianópolis, apontando uma lista de ações que o Comitê julgava necessárias para dar suporte ao setor cultural no contexto da pandemia da Covid-19. Nenhum dos dois ofícios enviados ao Prefeito com as demandas foram respondidos até o momento. Algumas destas demandas foram apresentadas na reunião presencial realizada com o Prefeito e representantes do CMPCF, no dia 07 de maio de 2020, sendo que de todas elas, até o momento, apenas duas foram atendidas: a liberação das inscrições de projetos culturais de forma digital para a Lei de Incentivo à Cultura (LIC), e a possibilidade de solicitação de prorrogação de projetos da LIC por mais 6 meses além do prazo já previsto na lei. Algumas dessas demandas foram negadas sumariamente na reunião, como a criação de um Projeto de Lei de renda emergencial para trabalhadoras e trabalhadores da cultura por parte do executivo, e outras tantas ainda não receberam retorno ou foram atendidas.
2. “De imediato, estamos juntamente com o Conselho entregando cestas básicas a todos da classe artística que estão (sic) precisando. Já ofertamos mais 190 cestas básicas nesse primeiro momento, e iremos ampliar ainda mais conforme necessidades apontadas. Além disso, iremos realizar toda a logística de entrega das cestas básicas, também conforme solicitação do Conselho.”
Sobre isto, cabe esclarecer duas questões. A primeira é que a referida campanha de arrecadação de doações de cestas básicas e de dinheiro para compra de cestas básicas para distribuição a trabalhadoras e trabalhadores da cultura em situação de vulnerabilidade socioeconômica foi uma iniciativa pessoal da presidente do CMPCF iniciada em março de 2020, que depois ganhou força e apoio do próprio CMPCF. O Conselho demandou apoio à Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes e à Secretaria de Cultura, Esporte e Juventude para dar andamento à campanha, e obteve este apoio por meio da Defesa Civil. Em um segundo momento da ação, o CMPCF obteve também apoio da Somar, com a doação de cestas básicas, e também com a logística de entrega das cestas, já no mês de maio. A segunda questão importante a ser esclarecida é que a referida campanha é uma ação humanitária, que visa auxiliar na alimentação de artistas e trabalhadoras/es da cultura que estão sem renda devido à paralisação das atividades do setor. Ou seja, essa ação não se configura como política pública para a cultura.
3. Ao ser questionado sobre quais das propostas de seu Plano de Gestão foram postas em prática nos três anos do mandato, o Prefeito responde: “Sim, temos várias delas, mas a de maior expressão foi o Edital de Apoio às Culturas, realizado no último ano. Além de contemplar o maior número de projetos até então, foi o que mais recebeu investimentos da prefeitura desde a sua criação.”
Apesar de ter sua anualidade prevista na Lei no. 8.478/2010, que cria o Fundo Municipal de Cultura de Florianópolis, o Edital, desde a sanção da Lei, está apenas em sua terceira edição. De acordo com as informações disponíveis no próprio site da Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes, sobre o Edital de Apoio às Culturas: “No ano de 2012 foram lançados 12 Editais no valor de R$ 1.350.000,00 (hum milhão, trezentos e cinquenta mil reais). Em 2018 foi realizado um Edital com valor total de até R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais). Em 2020 foi lançado um Edital no valor de R$ 990.000,00 (novecentos e noventa mil reais).”
Ou seja, em 2019 não houve lançamento do Edital, e o maior valor de investimento por meio de Editais via Fundo Municipal de Cultura de Florianópolis foi no ano de 2012, em sua primeira edição, sendo que dos Editais lançados no exercício de 2012, dois foram cancelados quando César Souza Júnior assumiu o mandato.
4. “Sempre recebi o Conselho de Cultura em meu gabinete, seja para alinharmos projetos e sobre o próprio Plano Municipal de Cultura, como também para atender as demandas emergenciais da classe.”
Cabe destacar que o CMPCF é órgão de assessoria direta do Chefe do Executivo e, portanto, os canais de diálogo devem ser permanentes e contínuos. Além disso, há a necessidade de as gestões governamentais atenderem às políticas públicas já constituídas para o setor da cultura em Florianópolis, bem como seus marcos legais, como o Edital Armando Carreirão de Audiovisual e o Edital de Apoio às Culturas. Ambos têm tido sua periodicidade anual desrespeitada pelas gestões municipais. Também cabe ratificar que Florianópolis, embora tenha aderido ao Sistema Nacional de Cultura e possua a estrutura mínima para o funcionamento do Sistema Municipal de Cultura, Plano Municipal de Cultura, Fundo Municipal de Cultura, Conselho Municipal de Política Cultural e Órgão Gestor da Cultura, todavia não possui ainda o Sistema Municipal de Cultura instituído por lei específica, nem decretos regulamentadores ou leis complementares para os instrumentos de gestão previstos no Plano Municipal de Cultura. Não bastasse isso, muitas ações, objetivos e metas elencadas no Plano Municipal de Cultura ainda não foram cumpridas, atingidas ou alcançadas, de modo a estabelecer políticas públicas estruturantes para o setor cultural e o novo modelo de gestão previsto. O que se verifica, no âmbito da gestão da cultura de Florianópolis, é um modelo anacrônico, em desacordo com os preceitos estabelecidos no termo de adesão do Município ao Sistema Nacional de Cultura, e cujo empenho está voltado para medidas pontuais e emergenciais e a realização de eventos, em dissonância com as ações e metas estabelecidas no Plano Municipal de Cultura. Ou seja, temos uma gestão voltada à satisfação de “políticas de governo” em detrimento às necessárias “políticas de Estado” pactuadas nas Conferências de Cultura e consolidadas no Plano Municipal de Cultura de Florianópolis.
5. Quando questionado pela entrevistadora sobre a desatualização do portal IDCult, e sobre o mapeamento do setor cultural e levantamento de indicadores por parte da Prefeitura, o Prefeito respondeu: “Sim, nesta gestão criamos um setor na Fundação Franklin Cascaes que se chama Observatório de Políticas Culturais. O objetivo é produzir informações e conhecimentos, gerar possíveis experiências e experimentações e fomentar dados estatísticos para a construção de políticas permanentes de cultura. Além, é claro, de promover extensões de natureza multidisciplinar e interinstitucional, cuja finalidade será a cultura como dimensão central de organização e funcionamento da vida dos florianopolitanos —seja enquanto grupos, comunidades ou individualmente. Quanto ao IDCult, em reunião com o Conselho, encaminhamos com a Superintendência de Ciência, Tecnologia e Inovação, a possibilidade de viabilização do mapeamento e criação de um cadastro semelhante, porém gestado dentro do servidor da Prefeitura. Isso facilitará a gestão dos dados, porque não precisaremos alocar em servidores terceirizados.”
De fato, o Observatório de Políticas Culturais foi criado e devidamente anunciado em Conferência Municipal de Cultura de Florianópolis. Porém, este Conselho, e a comunidade em geral, desconhece o trabalho realizado pelo mesmo, e destaca que nem seu site oficial traz informações sobre mapeamento e indicadores culturais que teriam sido levantados pelo Observatório. Vale ressaltar que o Prefeito afirma que: “O objetivo é produzir informações e conhecimentos, gerar possíveis experiências e experimentações e fomentar dados estatísticos para a construção de políticas permanentes de cultura. Além, é claro, de promover extensões de natureza multidisciplinar e interinstitucional, cuja finalidade será a cultura como dimensão central de organização e funcionamento da vida dos florianopolitanos —seja enquanto grupos, comunidades ou individualmente.”
Diante disso, seria oportuno que o Observatório de Políticas Culturais apresente seu trabalho de pesquisa e os resultados obtidos ao longo da atual gestão, e este conselho formaliza o convite para fazê-lo na próxima reunião do Conselho Municipal de Política Cultural de Florianópolis, a ser realizada dia 06/07/2020, às 19h.
6. A entrevistadora cita o Projeto Cultura pra Valer, lançado em julho de 2019, pela Prefeitura Municipal de Florianópolis, e a promessa de R$ 8 milhões em investimentos para o setor cultural, e questiona sobre a aplicação destes recursos. Na descrição desta aplicação, dada pelo Prefeito, destacamos incoerência em três pontos citados:
– R$ 800 mil com o Edital do Fundo de Cultura
– R$ 1,1 milhão para Edital de Apoio às Culturas 2019 / 2020 em andamento
– R$ 150 mil para apresentações artísticas: seria lançado do final para início do ano foi interrompido com a pandemia.”
Aqui ratificamos que em 2019 não houve a realização do Edital de Apoio às Culturas, e que dos 800 mil reais destinados à edição de 2018 deste edital 400 mil reais já estavam no Fundo Municipal de Cultura referentes a saldos da gestão anterior já depositados no Fundo. Deste modo, esses recursos não foram, em sua totalidade, destinados ao Fundo Municipal de Cultura na gestão do atual Prefeito.
Sobre a informação de ter executado R$ 1,1 milhão no Edital de Apoio às Culturas em andamento em 2020, cabe informar que o mesmo tem valor previsto de 990 mil reais e não de R$ 1,1 milhão. Além disso, houve retificações e prorrogações no Edital, e o mesmo ainda está em fase de inscrição de projetos culturais, o que de fato causa incerteza a este Conselho quanto ao pagamento dos contemplados neste ano fiscal de 2020, tendo em vista que estamos em ano eleitoral e por isso há restrições de prazo para a liberação de recursos desta natureza.
A respeito dos R$ 150 mil destinados pela Prefeitura para a realização de um Edital de contratação artística, que teria sido cancelado por causa da pandemia, este Conselho questiona o Prefeito do porquê não dar andamento ao referido Edital, com contratação de apresentações em formato virtual/on-line, como foi solicitado por todas as setoriais e pelo CMPCF como uma das ações emergenciais para o setor cultural no contexto da pandemia da Covid-19?
7. Ao ser questionado sobre sua compreensão de cultura, o prefeito responde: “Cultura é um conceito muito amplo, pois tudo o que fazemos é cultura, seja nos processos educacionais, como também nos processos de segurança, saúde, assistência. Nesse sentido, a cultura sempre será um vetor transversal da política pública. Isso porque ela atravessa todos os serviços públicos e essenciais de nossa cidade. Assim sendo, a cultura em meu governo sempre considerará todo o complexo de conhecimentos, de arte, de crenças, de lei, de costumes, de hábitos e aptidões adquiridos pelos florianopolitanos.”
Nesta declaração do Prefeito, apontamos para duas problemáticas. A primeira refere-se ao fato do mesmo apresentar um conceito de cultura amplo e abrangente, advindo do campo da antropologia e pertinente aos estudos daquela área, mas que aqui não aponta para as responsabilidades do Estado na consolidação e cumprimento das políticas públicas para a cultura, que é, de fato, o que se espera da maior autoridade política do Município. O Prefeito, deste modo, não considera as dimensões simbólica, cidadã e econômica da cultura, o que dificulta a compreensão da necessidade de políticas públicas estruturantes para o setor. A segunda problemática que este Conselho aponta é que esta resposta traz uma citação direta de trecho da obra do antropólogo britânico Edward Burnett Tylor (TYLOR, Edward Burnett. “A ciência da cultura”. IN: “Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylon e Frazer”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005., p. 79), cuja citação original é: “Cultura ou civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade”. Ou seja, ao fazer uma citação direta do conceito de cultura dada por Tylor em sua obra, sem indicar a devida referência, o Prefeito comete plágio, que pode ser enquadrado como crime de direitos autorais, previsto por lei.
Por fim, ressaltamos que este Conselho é e sempre será, pois assim está posto no marco legal que o criou, parceiro da Prefeitura Municipal de Florianópolis e do Chefe do Executivo para assuntos atinentes à cultura e às políticas culturais, independente do gestor em atuação.
Reiteramos a importância e urgência de implementação dos instrumentos de gestão necessários à institucionalização do Sistema Municipal de Cultura e do marco legal do referido Sistema; da manutenção e continuidade das políticas públicas já consolidadas para o setor, sobretudo aquelas expressas pelos Editais do Fundo Municipal de Cultura e do Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis; da necessidade imperiosa de ampliar e consolidar cada vez mais canais de comunicação diretos com o Chefe do Executivo e com os órgãos gestores da administração direta e indireta, evitando assim ruídos desnecessários e desgastantes; e da necessária revisão da visão, missão e valores do órgão gestor da cultura do Município, que deve ser bem equipado e ter seu corpo técnico valorizado e não pode ser tratado como mera agência promotora de eventos mas, sim, como estrutura de gestão séria e responsável das instâncias e instrumentos previstos nos marcos legais e regulatórios vigentes.
Conselho Municipal de Política Cultural de Florianópolis
Florianópolis, 03 de junho de 2020.