Palhaçaria para expandir: artista compartilha a experiência como (A)Gente do Riso

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Por Letícia Kapper, especial

É domingo e a semana já começa. Na mala, calça, meias, roupa de baixo, laços e maquiagem. Na bolsa que vai dentro da mala, pandeiro, estetoscópio e outros acessórios. No cabide, vestido e jaleco passados, esse com bolsos cheios – bolinha de sabão e o que mais a (A)Gente Esmeralda usa nas visitas no Hospital Infantil Joana de Gusmão.

É segunda e Débora de Matos em poucas horas dará espaço à Esmeralda. Mas a mãe é quem está em ação. Banho no pequeno Peri, de 6 meses, atenção para o Mateus de 8 anos – que está sob os cuidados do pai. Os três seguem para a casa da avó materna. É lá que começa o mergulho em uma das outras versões dela mesma. Já vestida de palhaça, dá de mamar para Peri, que aproveita para brincar com o nariz de Esmeralda.

13h30. Tempo de expandir e trabalhar na máxima potência como (A)Gente Esmeralda, dos (A)Gentes do Riso. Ao lado de cinco companheiros de trabalho, ela visita todas as alas do Hospital Infantil Joana de Gusmão, destinado exclusivamente ao atendimento pediátrico. O objetivo: colocar luz no que está bom por meio do riso, visto por ela como ferramenta de transformação que potencializa a cura.

Numa conversa franca e aberta realizada em outubro de 2019, Débora fala sobre o seu processo de expansão a partir das vivências no hospital e sobre o desafio da manutenção do projeto (A)Gentes do Riso, coordenado pela Traço Cia de Teatro, da qual faz parte da equipe de criação e produção.

Parte 1 – Olhando para dentro

Palhaçaria em ambiente hospitalar

É uma oportunidade profissional: nós, como artistas, lutamos para abrir espaços de trabalho que estejam conectados à nossa fome. E o hospital para mim é esse lugar, onde consigo unir minha busca com a minha arte. Está além do riso, é uma jornada de emoções que você visita no mundo que te colocam. 

E  tudo tem a ver com potência. Como artista, como palhaça, você encontra a sua necessidade e a do outro, amplia a sua potência e a partir dela amplia a potência do outro, impulsiona a pessoa a seguir naquele desafio. É tudo uma questão de luta, cada pessoa no desafio de sua luta.

Foto: Vanessa Soares

Riso como ferramenta para cura

É difícil falar em termos científicos, embora existam estudos que falam que o riso limpa nosso pulmão a ponto de evitar muitas doenças.  O riso é potência, ele ativa nosso lugar de potência, de ação e isso de algum modo contribui com o processo de cura sim. 

Chacovachi, um palhaço argentino que entrevistei para minha dissertação, falou uma coisa sobre o processo de formação que me tocou muito na época e guardo até hoje: inicialmente ele aconselha o artista trabalhar sobre o clássico, aquilo que já sabe que funciona. Então traz para si, para o seu corpo, para a sua prática aquilo que sabe que funciona. Com o tempo, quando vai adquirindo autonomia, aconselha que comece a criar e imprimir em sua fala suas próprias palavras, colocar sua própria fala cada vez mais no seu fazer artístico.

E de repente, quem sabe juntam-se alguns planetas e ele [o artista] começa emocionar sua platéia e quem sabe até curá-la. Levei muito a sério isso porque quando você vai amadurecendo como artista é que consegue trabalhar neste sentido, fazendo esse malabares com as energias e as emoções — tanto com as suas quanto com as das pessoas que estão vivenciando aquele momento com você.

Vivemos no hospital muitas situações em que enfermeiras e técnicas se surpreenderam com as respostas imediatas de bebês e de crianças que estavam desacordadas e ligadas à aparelhagem hospitalar. Elas assistiram muitas vezes a bebês e outras crianças desacordadas reagindo positivamente durante aquele instante imediato da intervenção, por meios dos sinais registrados na aparelhagem (com alterações nos níveis de saturação, de frequência, de pressão).  Então acho que é também disso que se trata e isso de algum modo sempre nos deu respaldo para acreditar na potência daqueles encontros.

Isso mostra também como o corpo da gente é capaz de sorrir de diferentes formas. Às vezes até mesmo uma lágrima que se descola dos olhos pode ser uma forma de sorrir… Uma forma dos olhos sorrirem. E todo nosso trabalho passa por aí: pela busca de descobrir, a cada encontro, como fazer aquele corpo sorrir. E assim sorrimos também, de diferentes formas.

Sempre acompanhada

Nós somos uma equipe. Na última edição (2019), fomos 13 agentes e treinamos juntos. Toda semana estamos numa sala onde trabalhamos muito por meio da exposição, por meio do riso — que dilata, expande a capacidade e possibilidades de cada um de nós. Criamos um nível de afetividade e cumplicidade muito intenso e é ao lado dessas pessoas que eu vou para o hospital, como dupla nos quartos e como quarteto nos ambulatórios.

 A gente não tem dupla fixa, é praticamente um rodízio para fazer com que todo mundo possa fazer visitas ao lado de todo mundo e exercitar com pessoas diferentes, outras lógicas de se relacionar, de desenvolver o jogo. São todos artistas profissionais, que encontram na prática da palhaçaria os seus modos de pronúncia de mundo, mas na mesma luta, no mesmo caminhar, na mesma presença.

Foto: Vanessa Soares

O último plantão

Para dar conta de todo hospital, organizamos a intervenção do (A)Gentes do Riso em três roteiros de modo que temos sempre uma dupla responsável a cada visita. Ontem [outubro de 2019] fiz pela primeira vez, depois que Peri nasceu, o roteiro que cuida mais das unidades imunodeficientes — UTI, UTI-Neo, berçário, oncologia, área de queimados — que demandam mais atenção. Ali lido com muitos bebês. Tem sempre o medo da projeção do filho no lugar das crianças que estão lá. Mas foi muito leve, teve muita cumplicidade, encontrei muitas mães nessa fase de aleitamento que não dormem à noite como eu.


Em cada visita vivemos momentos muito especiais. Ontem, uma situação específica me marcou bastante: na ala de queimados tinha um autista e nos foi indicado para não visitar o quarto dele, mas enquanto estávamos passando, fazendo música, ele seguiu o ritmo da música, os pais se empolgaram e sentaram ele na cama e ele ficou ali com a gente bastante tempo.

Não dá para subestimar o encontro, porque ele acontece. 


Débora de Matos

Teve outro quarto que eram bebês e as mães, na hora que viram a gente, ficaram tensas, preocupadas com tumulto, mas não é isso que a gente faz. A gente trabalha muito também na delicadeza. E aí entra a coisa de não desistir no primeiro não, mas ao mesmo tempo respeitando o espaço do outro, sem impor nada. 

É um aprendizado eterno. Estar num espaço que você vive muito da vida, da morte, da dor, da alegria, isso ensina muito sobre o que é importante: a saúde, o bem estar, tenho que agradecer muito a saúde que tenho, a saúde de meus filhos. 

É muito mágico o encontro que a gente vive. Você se expande no encontro com outro. Esses lugares mais sutis como os de resistência e luta pela vida e pela cura colocam a gente no exercício de expansão. 

Laboratório para viver e expandir

É um laboratório tanto profissional — o exercício é sempre novo, porque a cada encontro é uma pessoa diferente e você pode usar o que tem ou criar algo novo — quanto de vida: que é muito intenso. De encontrar sentido na vida, missão, propósito. No nosso caso, a vida profissional está muito vinculada à vida pessoal. Ambos seguimentos se colocam praticamente como uma coisa só: a vida. Tudo que você constrói como técnica está em você, é você, é tudo que você traz como história de vida.

Tem essa sensação de lugar no mundo. É um lugar da minha necessidade, da minha jornada pessoal. Eu acredito muito que a gente acaba tendo um lugar, vem numa jornada de superação, de expansão. Essa “máquina” não possibilita que as pessoas encontrem seu lugar. Eu sinto que tento dar conta da “máquina” mas agarrada no meu lugar de necessidade pessoal. 

Foto: Vanessa Soares

A palhaça e a mãe de dois

A projeção existe de algum modo. Você lida com crianças e às vezes encontra um paciente com o mesmo nome do seu filho. Ou encontra uma mãe que está passando por uma situação que já passou ou que também está passando – como nesse momento que estou amamentando, no puerpério, vivo várias questões desse período, voltando ao trabalho. Encontro mães em contextos semelhantes, com o agravante de estarem em uma unidade hospitalar acompanhando seus filhos.

A projeção acontece naturalmente por meio da própria empatia, mas é um cuidado que eu tenho de que ela não aconteça de um modo totalmente emocional, mas que aconteça por meio de uma emoção-racional (como uma emoção orquestrada por uma inteligência cênica) e favoreça o jogo, da lógica da palhaça, da relação, ainda que afetiva, mas consciente . 

Esse é um jeito que tenho para me proteger emocionalmente e de algum modo não ficar vendo meus filhos em todas as situações que vivo lá dentro porque se não, não daria conta, nenhuma mãe daria. 

A gente sabe que existem muitas possibilidades de tropeços na vida. Não são só doenças congênitas, são muitos acidentes domésticos, por exemplo. Então de algum modo tento ficar leve em relação a isso, sem construir esse tipo de projeção ou fazer uma projeção que de algum modo não me afete tão emocionalmente. Tudo para poder dar conta de olhar para os meus filhos em casa ou olhar para as crianças no hospital e dar o meu melhor, trabalhando na minha potência e na minha alegria e não na minha dor. 

O grande desafio de toda visita

É dar conta quando entro no quarto, porque não temos garantia. Vivendo isso há 9 anos e em contínuo treinamento toda quarta me sinto bem amparada. Então a chance de dar certo, de que o encontro seja potente, é maior. Se já deu errado? Já, com certeza! Mas “dar errado” não é uma boa palavra. Só às vezes não vai no lugar onde pode ir.

A gente é muito bem amparado pela máscara da palhaçaria e pelo repertório. Na pior das possibilidades você tem algo para partilhar artisticamente. Às vezes não eleva a potência do encontro ao que poderia ter, mas sempre tem uma experiência estética.

Foto: Vanessa Soares

A potência máxima de um encontro

Eu tenho uma imagem que trago desde sempre: ser capaz de fazer o tempo parar e eternizar aquele momento. Entrar num lugar de suspensão! É uma questão energética, de eternizar um momento.

Ao final de cada plantão

Ao final de cada plantão a gente sai com aquela máscara. Agora, bem especificamente, eu tenho saído do plantão vestida de palhaça e a gente vai interagindo com as pessoas no trânsito até chegar em casa. 

Mas mesmo antes de estar com o bebê tão pequeno, que eu me descaracterizava dentro do hospital e saia vestida de “mim” assim, nesse modo social, ainda assim saía brincando com as pessoas e as pessoas nos olhavam sem entender o que estava acontecendo. Olhavam com receptividade, mas surpreendidas por essa abordagem tão livre.

Débora depois de Esmeralda

Estar no hospital impacta no nosso dia a dia, no nosso olhar para a vida. Essa possibilidade de conviver com a vulnerabilidade (e experienciá-la como palhaça), com a delicadeza que é a vida humana, faz com que eu repense valores, padrões sociais, lugares que acabo ocupando. Faz com que eu repense a relação que vivo com meus filhos e as relações com quem tenho por perto de modo geral

É como um chacoalhão da vida para dizer: calma, para, respira, olha, veja, perceba o que está do seu lado, o que pede, o que é necessário ao seu lado, ao seu redor, não só pelo outro, mas para si mesmo também.

Porque às vezes é mais fácil você visualizar o que necessário para o outro do que perceber o que é necessário para si ou para as pessoas que estão muito próximas a você. 

Parte 2 – Olhando para fora

Democratização da arte dentro do Hospital

O projeto tem um carisma muito forte junto à população, e por isso acaba divulgando o fazer artístico, o artista para camadas da sociedade que não conhecem, não têm acesso, nunca viram, nem sabe que existe.

O hospital onde a gente trabalha abraça crianças e adolescentes em casos de média e alta complexidade de todo o Estado (SC). Então trabalhamos com uma diversidade muito grande de pessoas. E contribui demais com esse processo de divulgação, de democratização.

A própria imagem da palhaça e do palhaço é algo muito deturpado. Algumas mães ficam assustadas ao ver palhaços chegando, pensando na loucura que pode ser, mas não.

A palhaçaria não é só essa loucura. Ela é delicadeza, respiro, afetividade. Transita em muitos sentimentos (incluindo a loucura quando a permissão é dada). O projeto acaba possibilitando a gente viver isso com as pessoas. Então o projeto não é somente um suporte de sustento, mas de disseminação, de divulgação do fazer artístico. 

Foto: Vanessa Soares

Traço versus (A)Gentes do Riso

O papel da Traço Cia de Teatro é fundamental porque o projeto é uma concepção da Traço, foi idealizado dentro da companhia e inicialmente foi desenhado apenas para os artistas que fazem parte da companhia. Mas assim que conseguimos o primeiro patrocínio pensamos que o projeto era muito especial para não compartilhar com outros profissionais.  E foi aí que decidimos chamar outros artistas que trabalham com palhaçaria aqui na cidade para compor a equipe.

A primeira edição foi direcionada para a formação do projeto, dos profissionais (porque todos já trabalhavam com palhaçaria, mas o treinamento foi bem focado para o trabalho em ambientes hospitalares, que é uma outra linguagem). Então sabíamos que os profissionais precisavam começar com a gente ali, naquele momento, para darmos as mãos e seguirmos caminhando depois nos próximos anos. Desses profissionais, todos permanecem com a gente até hoje.

Outros entraram e desses alguns tiveram que deixar o projeto, mas a maioria segue ainda de braços dados. Mesmo quem não está mais frequentando o hospital não se desvinculou por completo do grupo porque temos um treinamento muito intenso no qual criamos um vínculo afetivo muito grande.

Por mais que todos os artistas tenham muita autonomia no projeto, ainda assim existe a coordenação da Traço. É uma coordenação de ordem técnica, estética, ética e artística de um modo geral. A Traço segue conduzindo e dando a forma que o projeto tem hoje, sempre respeitando e acolhendo o modo com que cada artista que se integrou no projeto trabalha. 

Manter-se como artista no Brasil

O projeto é uma prática muito importante para mim e para todos os artistas porque além de ser um lugar de pesquisa muito intensa, de troca muito intensa e experiências muito fortes, tem a questão do profissional, da remuneração. A gente aposta nisso como projeto profissional e busca as leis de incentivo como mecanismo.

Conseguimos remunerar os artistas, não sei se ainda do modo ideal, então o projeto é também uma grande resistência, de sobrevivência para cada um de nós.

Claro que é um apoio, um suporte, mas com certeza é um suporte bem importante pra mim e para os artistas que estão nele envolvidos. 

Luta pela manutenção do projeto

É uma luta o projeto se manter do país, na cidade. Por mais carisma que tenha, é um projeto que não atende diretamente ao patrocinador, por não atingir o público direto dele. O projeto atende a um público que está hospitalizado. Esse é o nosso público alvo. Então quando ganhamos um patrocinador, ganhamos pelo  carisma que projeto traz para a marca, como uma contrapartida social.

Mas é muito difícil de sustentar os patrocínios, por várias razões. Às vezes acontece de uma empresa mudar muito de um ano para o outro o investimento que pode ser feito em cultura. 

Sofremos bastante em 2017 e em 2018 com o decreto que inviabilizou a maioria dos patrocinadores que atuavam na cidade junto a Lei Municipal de Incentivo à Cultura. O (A)Gentes do Riso foi um dos projetos afetados e outros muitos foram afetados também. E ainda: a lei federal de fomento está toda se refazendo agora. A gente tem o desafio de sempre estar se alinhando às leis de incentivo e buscando a manutenção de patrocínio para que o projeto siga em frente.

Foto: Diogo Andrade

Apoio para seguir

O projeto precisa de apoio para seguir existindo. O principal mecanismo de fomento são as leis de incentivo — aportes diretos também são bem-vindos via depósito bancário.  A Lei Municipal utiliza o IPTU e o ISS e a Lei Federal o imposto de renda (IR), tanto de pessoa física quanto jurídica. Existem limitações para patrocínio tanto numa lei quanto na outra, mas muitas empresas e muitas pessoas podem apostar no projeto e às vezes não sabem. 

Como apoiar o projeto:

Se você tem dúvidas se consegue ou não usar seu imposto para apoiar um projeto cultural, fique à vontade para entrar em contato com os integrantes do projeto. A equipe dá apoio e acolhida com informações, orientações e até faz junto. É interessante pensar que existem muitas maneiras de fortalecer uma iniciativa como essa. Só o fato de acompanhar nossos movimentos, de comentar, ajudar a divulgar, tudo isso gera visibilidade importante para o projeto a ponto de ampliar as nossas possibilidades de arrecadação – o que possibilita o projeto acontecer. 

Em 2019, o projeto teve apoio cultural, por meio da Lei Municipal, do Lira Tênis Clube. A CGT Eletrosul entrou como apoiadora por meio da Lei Federal e segue com a parceria no ano de 2020.

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