Reconhecer que existe sombra é acolher a dualidade. Não é preciso filosofar longe na alegoria da caverna, de Platão. A arte nos dá um empurrão: por meio do milenar ofício de manipular a luz e contar histórias, o teatro de sombras é uma das linguagens capazes de transportar instantaneamente espectadores para o lugar do mágico. Em cartaz até sábado (27) em Florianópolis, o espetáculo Iara – O Encanto das Águas, da brasiliense Cia Lumiato, evoca a mágica da mitologia indígena num belíssimo espetáculo de cores, som e, claro, sombra. A apresentação, gratuita, é no Teatro Pedro Ivo.
A Cia Lumiato é uma das poucas companhias que atua profissionalmente e exclusivamente com teatro de sombras no Brasil — são apenas seis ou sete no total. Iara, primeira peça do duo formado em 2008 por Soledad Garcia e Thiago Bresani, é uma montagem imprescindível não só pelo trabalho da companhia, que mantém viva essa tradição milenar e a leva para devaneios contemporâneos e tecnológicos, mas por sensibilizar as pessoas sobre o folclore brasileiro e, principalmente, sobre os saberes da tradição oral dos povos originários do país. O espetáculo é uma festa para os olhos e para alma. Toca na força do feminino e na potência do sagrado, da intuição, do destino. Mergulho na dualidade de um Brasil que hoje vive em duelo político e social.
Poucos grupos de teatro de sombras no Brasil
Não se sabe exatamente quando ou como o teatro de sombras chegou ao Brasil, mas há relatos de que em Santa Catarina tiveram apresentações dessa linguagem já no começo do século 19. Dentre o reduzido número de companhias que seguem essa tradição no país, uma delas é de Florianópolis, a entreAberta Cia Teatral, formada por Fabiana Lazzari e Tuany Fagundes.
— São apenas seis ou sete grupos. São poucos porque é muito difícil trabalhar com sombras. Em primeiro lugar, porque se fica muito tempo no escuro. É preciso ter habilidades em trabalhar com diferentes técnicas: luz, fotografia, tem que saber matemática — diz Fabiana Lazzari, atriz, produtora e diretora da entreAberta.
Trata-se de um ofício artesanal também. Todas as silhuetas e formas que o público vê é confeccionado pelos artistas, que precisam entender inclusive da anatomia para dar movimento ao corpo humani. A preparação pode levar até dois anos. Vale dizer ainda que a sombra, efêmera, tem um tempo que é dela. Essas particularidades fazem com que grupos não tenham tanto afinco para dar continuar.
— Para atuar, é antes preciso entender quem é a nossa sombra, filosoficamente conversar com ela e ver o que a sombra te fala. Depois dessa sensibilização, entra a técnica: como manipular a luz, como projetar a sombra na tela. Perceber o que se pode criar. E nesse contexto, o corpo não é só um corpo, ele está dilatado — explica Fabiana.
Arte milenar X linguagem contemporânea
A origem do teatro de sombras é imprecisa. Sabe-se que muito antes de Cristo, a contar pelo que se vê em museus, já se usavam sombras de silhuetas para contar histórias. Em países como a China e a Índia, é uma tradição muito antiga, passada de geração a geração. Na China, por exemplo, existem grupos com mais de 400 anos de formação.
— No passado a luz era da vela ou do azeite. Era o fogo que fazia que acontecesse a sombra, e a atuação tinha que ser realmente colada na tela, caso contrário desaparecia — conta Fabiana Lazzari, que é também pesquisadora e professora na Udesc.
A luz elétrica revolucionou essa arte e o teatro de sombras contemporâneo hoje extrapola até mesmo espaços cênicos, sendo uma arte interdisciplinar por incorporar elementos da fotografia, das artes plásticas, da engenharia elétrica, matemática.
— Hoje se trabalha com a luz na mão e é possível editar a cena como se fosse cinema. Além disso, se podem usar diferentes elementos e materialidade, tanto do tecido, que pode ser translúcido ou fechado, papel, jornal… E pode ser apresentado no palco ou numa área grande, na rua, num prédio.
Para Fabiana, dar continuidade a essa arte é fundamental não só por resguardar uma tradição milenar, mas porque o teatro de sombras evoca o mágico, o onírico.
— Faz com que as pessoas imaginem, criem. Não necessariamente precisa ter narrativa com começo meio e fim. Deixa o publico estar nesse espaço diferente. E convida-nos a fazer qualquer coisa com a sombra, a pensar nela poeticamente e a tirá-la do inconsciente.
Agende-se
Iara – O encanto das águas
Quando: sábado (27), às 20h30min
Onde: Teatro Governador Pedro Ivo Campos (Rod. SC-401, 4.600, Saco Grande, Florianópolis)
Quanto: gratuito