Performance: coletivo Corpo em Denúncia alerta para crise hídrica e genocídio da fauna e flora na Ilha de SC

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Assim que começa a ficar sem água, o corpo retira das próprias células o liquido necessário para seguir funcionando. O primeiro órgão afetado é o cérebro: os eletrólitos entram em pane, logo começam as alucinações, dores insuportáveis, delírios. Os rins param de funcionar, seguidos pelo colapso total do organismo. Você já sentiu sede? Em Ensaio sobre a Cegueira, série de intervenções de performance/protesto, o coletivo Corpo em Denúncia alerta sobre desigual e historicamente antropocêntrica relação do ser humano com o meio ambiente.

O primeiro ato, chamado Vidas Secas, foi realizado no dia 7 de junho. Num domingo de quase-inverno no Sul do país, junto à fauna agonizante, a flora ressequida e a paisagem transformada da Lagoa do Peri, em Florianópolis, o grupo se despiu de ego para experimentar a empatia. Uma performance artística/política/ecológica para vivenciar o desespero de não ter água nas torneiras, tão comum principalmente nos bairros de periferia, ou de não ter as condições mínimas que um organismo precisa para seguir vivendo.

Os registros feitos pela cineasta Sandra Alves e pelo videomaker Todd Southgate resultaram numa videoarte, com direção de Sandra e música original de Hedra Rockenbach, que você assiste em primeira mão aqui:


corpo_em_denúncia from VAGALUZES FILMES on Vimeo.

— O propósito foi refletir sobre a situação de seca. E também sobre de que forma a pandemia nos afeta a todos, as pessoas que estão morrendo. A morte de tudo à volta.  A gente pode não ver, mas sente. Propusemos falar sobre essas perdas a partir da arte — explica a artista Florasmin Angá, integrante do grupo Corpo em Denúncia.

O estranhamento provocado pela intervenção foi proposital. A estiagem no primeiro semestre de 2020 foi histórica e esvaziou a Lagoa do Peri, manancial responsável pelo abastecimento de bairros do Sul e Leste da Ilha de Santa Catarina. No começo de junho, a captação de água estava reduzida em 50%.

Fotos: Sandra Alves, reprodução // Imagens aéreas: Todd Southgate

— A estiagem estava nos jornais. Será que se normalizou o teor de notícias sobre isso? É triste, mas ninguém se comove mais? Nossa intenção é convidar as pessoas a se questionarem — ressalta Flor.

Ecologia + Arte = Justiça Social

Ainda que a chuva tenha amenizado a seca, a situação do Peri, maior lagoa de água doce potável da costa catarinense e maior manancial de água potável da Ilha de Santa Catarina, está longe de normalizar. Mestre em agrossistemas e participante do coletivo que fez a intervenção, a bióloga Mariane Gonçalves Lintemani alerta que se o manancial não voltar à capacidade ideal, a seca se agrava a cada novo período de estiagem.

— Os problemas são vários. Entre eles a proliferação de bactérias, como se registrou no ano passado e a Lagoa do Peri chegou a ser interditada. Tem ainda a questão de modificar o ecossistema local. O rio Sangradouro, por exemplo, corre o risco de perder a conexão com a lagoa. Trata-se de um canal importante e por onde se tem fluxo de cardumes — explica.

Para a bióloga, a ecologia também é política, porque permeia todos os campos da desigualdade:

— E nosso papel é questionar e se apropriar do que acontece, não só quando atingimos uma situação de calamidade. Tem as questões das periferias, por exemplo, que durante o período de estiagem ficaram dias sem água. Para zonas periféricas, a coisa sempre fica pior, demora mais. E essa foi uma das mensagens da perfomance também, a desigualdade entre periferia e elite. As questões ecológicas passam por tentar corrigir a injustiça.

Prestar atenção nos hábitos diários (quanto tempo se leva no banho, lavar a calçada, a torneira aberta ao escovar os dentes) é um ato simples e quase heroico nesse contexto. E para quem quer aprofundar a reflexão, por que não considerar alternativas como banheiros secos, cisternas e outras medidas mais ecológicas para construção de casas?

— É urgente repensar a relação entre a natureza e as demandas de nossa permanência como parte dela (…). Para garantir a perpetuação da Lagoa do Peri e de seu usufruto humano, é necessário um plano de contingenciamento para a captação da água, que imponha limites coerentes à capacidade desse ecossistema e permita sua manutenção saudável. Repensar a forma como utilizamos a água e outros recursos naturais essenciais na microesfera do nosso dia a dia também é urgente para construirmos uma nova forma de convívio entre seres humanos e sociedade natural, respeitando ciclos e capacidades — apela a bióloga.

Performance como meio de expressão

O coletivo Corpo em Denúncia surgiu do propósito de pessoas de diferentes áreas de atuação que buscam atuar na zona performativa para responder, denunciar e questionar artisticamente questões relacionadas ao meio ambiente e à desigualdade social.  Em seu manifesto, o grupo explica que as obras são um dispositivo performático sobre a violência que o ser humano causa para si mesmo. O propósito é aproximar a arte da vida e como meio de buscar soluções.

Na primeira performance, realizada na Lagoa do Peri, no auge da estiagem, corpos nus espalhados pela faixa de areia agonizavam num processo de quase morte. Ao lado, tomando leite em taças e com olhos vendados, pessoas sentadas em cadeiras assistiam ao espetáculo de horror, numa representação da alienação de quem tem privilégios e escolhe não enxergar. Todo o conceito teve direção de montagem, mas a ideia foi instigar os participantes a sentir, muito mais do que atuar.

— Como você se sente diante de corpos mortos? Como você se sente quando está com sede? Qual a sensação de saber da sede que as pessoas sentem? Ao refletir sobre essas questões, a ideia era deixar o corpo dos participantes livre para sentir / fazer o que quisesse sobre o assunto. Como uma arte espontânea. Imaginamos o cenário, as pessoas nuas com a natureza, os corpos mortos e que agonizam. Os ternos representando a burguesia cega. Eu também não sabia como seria. Eu senti muito frio  — relata Florasmin Angá.

Onze pessoas participaram da performance: Lilian Rosani Paes, Marcos José de Abreu (Marquito), Caco Zago, Vinicius Rossato, Bianca Milani, Florasmin Angá, Margareth McQuade, Paulo Luis Abreu Haase, Lucas vedana, Bianca de Fiori Milani e Mariane Gonçalves Lintemani, além de Sandra Alves e Todd Southgate, responsáveis pelos registros.

— Não queríamos criar algo que fosse só entretenimento, mas que pudesse chamar atenção e propor soluções. Uma forma de levantar uma bandeira — e a arte é um bom lugar para isso — pontua a artista.

Nesse sentido, a performance como meio de expressão possibilitou a discussão da arte como ato ecológico, não só político:

— A arte é expressão do espírito, seja por meio de um ato político ou de um balde de uvas desenhado numa tela. Se é uma expressão, então é única. Para mim não há julgamentos ou separações: se é arte, entretenimento ou ativismo. Tudo é válido.

Depois do primeira performance, no começo de junho, estão programadas outras ações para quando a pandemia passar, incluindo uma intervenção crítica ao projeto Asfaltaço,  da Prefeitura de Florianópolis. Para saber da agenda, informações estarão nos perfis @florasmin.anga e @marquitovereamor no Instagram.

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