Tradução: poema do premiado autor nigeriano Ben Okri e a denúncia da pilhagem europeia

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Por Pedro F. Heise, especial para a Gulliver

Ben Okri nasceu em 15 de março de 1959 em Minna, na Nigéria. Passou a infância em Londres, e sua família voltou à Nigéria em 1968. Mais tarde, Okri regressou à Inglaterra, onde realizou estudos na universidade de Essex, em Colchester. Publicou seu primeiro romance em 1980, Flowers and Shadows (“Flores e Sombras”), e logo em seguida, em 1981, The Landscapes Within (“As paisagens interiores”), nos quais emprega imagens surrealistas para descrever a corrupção de um país transtornado politicamente. Na mesma década publicou duas narrativas breves, Incidents at the Shrine (“Incidentes no Santuário”), de 1986, e Stars of the New Curfew (“Estrelas do novo Toque de recolher”), de 1988, que narram a cultura nigeriana sobre a relação entre o mundo físico e o mundo dos espíritos, tema que parece percorrer boa parte da produção de Okri.

Mas foi em 1991, com The Famished Road (“A Estrada Faminta”), que Okri passou a ser conhecido internacionalmente. Um romance que narra a história de Azaro, uma “criança espírito” em busca de sua identidade. Com essa obra, Okri recebeu o Booker Prize, um dos mais prestigiados prêmios da Inglaterra dedicado a romances de língua inglesa. De lá para cá, publicou mais uma dezena de romances, dos quais se destaca Dangerous Love (“Amor perigoso”), de 1996, sobre o amor na Nigéria pós-colonial.

Em 1992, Okri publicou seu primeiro livro de poemas, An African Elegy (“Uma Elegia Africana”), título tirado de uma das poesias do volume. Trata-se de uma coleção de 29 poemas nos quais o poeta nigeriano incita seus conterrâneos a superar as forças do caos trazidas pelos brancos. De início a coletânea chamou minha atenção por causa do nome “elegia”, pois, na antiguidade, era um gênero poético bastante preciso quanto a sua métrica: o dístico elegíaco. Com o advento das línguas modernas, o metro deixou de ser elemento essencial da elegia, que passou a orbitar em torno de dois temas, sobretudo: o amor e o lamento.

Uma Elegia Africana foi publicada em 1992. Créditos das fotos: Reprodução

No poema de abertura, Lament of the Images (“Lamento das Imagens”), aqui traduzido, Okri denuncia de maneira quase prosaica a pilhagem, por parte dos brancos, das esculturas, máscaras, ossos e outros objetos sagrados. Não explicita quem seriam os brancos (uma dica é a língua em que Okri se expressa), mas deixa claro que essa força brutal vem do Ocidente, que usa de forma indevida o nome da ciência, da arte, para classificar, rotular tudo aquilo que, para o povo de Okri, era sagrado. Os brancos os chamaram de “objetos primitivos”, os “submeteram / Ao leite / Do escrutínio / Científico” e “criaram uma química” para designá-los como “arte”. A África, os africanos, foram tornados pelos brancos, no melhor dos casos, objetos de estudo. No entanto, o “Fazedor de Imagens” continua vivo, parindo máscaras que falam, mas poucos podem ouvi-las. Por isso, é preciso “Reaprender suas / Canções”, por isso o povo africano precisa recuperar, ou melhor, reforjar sua identidade.

Lament of the Images

They took the masks
The sacrificial faces
The crafted wood which stretches
To the fires of natural gods
The shrines where the axe
Of lightning
Releases invisible forces
Of silver.

They took the painted bones
The stools of molten kings
The sacred bronze leopards
The images charged with blood
And they burned what
They could not
Understand.

They burned
All that frightened them
In the ferocious power
Of ancient dreams
And all that held
The secrets
Of terror
And all that battled
With dread
In the land
And all that helped
The crops
Sprout
All that spoke
To the gods
In their close
And terrifying
Distance
They burned them all
They burned them in heaps
They burned them in alien piety.


They took some images
And brought them across
The withening seas
And stored them in
Basements
For the later study
Of the African’s
Dark and impenetrable
Mind.
They called them
‘Primitive objects’
And subjected them
To the milk
Of scientific
Scrutiny.

2

The Images died in spirit
And contorted
Their faces
In the Western
Darkness.

In their native lands
Other Images were made
For new seasons
A new god
For a new
Age.

And when the Images began
To speak
In forgotten tongues
Of death
The artists of the alien
Land
Twisted the pain
Of their speech
And created a new
Chemistry
Which, purified of ritual
Dread,
They called
Art.

3

The secret places
Of the African’s
Dark and impenetrable
Mind
Touch the spirits
Of the deepest night.
The masks still live
Still speak
And only a few
Can hear them
Hear the terror of their
Chants
Which breed powers
Of ritual darkness
And light
In the centre
Of the mind’s
Regeneration.

The makers of Images
Kept their secrets well
For since the departure
Of the masks
The land
Has almost
Forgotten
To chant its ancient songs
Ceased to reconnect
The land of spirits.

4

And the spirits
Hunger
For our touch
Our contact.
The spirits
In their
Loneliness
Have begun
To go insane
They possess
Our minds
They grip our dreams
They weigh down
The flights
Of our inventions.
And every now and again
We break out
In strange tongues.
Rashes
Of violence
Streak across
Our continent
And hang over our
Skies.

The maker of Images
Dwell with us still
We must listen
To their speech
Re-learn their
Songs
Recharge the psychic
Interspaces
Of our dying
Age
Of live dumb
And blind
Devoid of old
Song
Divorced from
The great dreams
Of the magic and fearful
Universe.

Lamento das Imagens

Eles pegaram as máscaras
As faces sacrificiais
A madeira trabalhada que estende
Aos fogos de deuses naturais
Os templos onde o machado
Do relâmpago
Liberta forças invisíveis
De prata.

Eles pegaram os ossos pintados
Os bancos de reis derretidos
Os sagrados leopardos de bronze
As imagens gravadas com sangue
E eles queimaram o que
Eles não podiam
Entender.

Eles queimaram
Tudo que os aterrorizava
No selvagem poder
De antigos sonhos
E tudo que guardou
Os segredos
Do terror
E tudo que lutou
Com medo
Na terra
E tudo que ajudou
As plantações
A brotar
Tudo que fala
Com os deuses
Na sua íntima
E terrificante
Distância
Eles os queimaram todos
Eles os queimaram em montes
Eles os queimaram na piedade alheia.


Eles pegaram algumas imagens
E as levaram através
Dos mares alvejantes
E os depositaram em
Porões
Para estudar mais tarde
Dos africanos a
Escura e impenetrável
Mente.
Eles os chamaram
‘Objetos primitivos’
E os submeteram
Ao leite
Do escrutínio
Científico.

2

As Imagens morreram em espírito
E contorceram
Suas faces
Na Ocidental
Escuridão.

as terras nativas deles
Outras Imagens foram feitas
Para novas estações
Um novo deus
Para uma nova
Era.

E quando as Imagens começaram
A falar
Em línguas esquecidas
De morte
Os artistas da terra
Alheia
Retorceram a dor
Do seu discurso
E criaram uma nova
Química
Que, purificada do terror
Ritual,
Eles chamaram
Arte.

3

Os lugares secretos
Da africana
Escura e impenetrável
Mente
Toca os espíritos
Da mais profunda noite.
As máscaras ainda vivem
Ainda falam
E apenas poucos
Podem ouvi-las
Ouvir o terror de seus
Cantos
Que criam poderes
De escuridão ritual
E luz
No centro
De sua mente
Regenerada.

Os fazedores de Imagens
Guardaram bem seus segredos
Pois desde a partida
Das máscaras
A terra
Quase que
Esqueceu
De cantar suas antigas canções
Parou de religar
A terra dos espíritos.

4

E os espíritos
Famintos
Pelo nosso toque
Nosso contato.
Os espíritos
Em sua
Solidão
Começaram
A enlouquecer
Eles possuem
Nossas mentes
Eles agarram nossos sonhos
Eles oprimem
Os vôos
Das nossas invenções.
E sempre ocasionalmente
Nós brotamos
Em línguas estrangeiras.
Ondas
De violência
Riscam através
Do nosso continente
E pairam sobre nossos
Céus.

O fazedor de Imagens
Ainda habita conosco
Nós temos que ouvir
O seu discurso
Reaprender suas
Canções
Recarregar os psíquicos
Interespaços
Da nossa agonizante
Era
De viver mudo
E cego
Destituído da velha
Canção
Divorciado dos
Grandes sonhos
Do mágico e temível
Universo.

Ben Okri, Lamento das Imagens, de Uma elegia africana (An African Elegy, 1992), tradução de Pedro F. Heise.

Pedro Falleiros Heise é tradutor e professor de Latim da UFSC. Entre seus trabalhos como tradutor destacam-se a Eneida ,de Virgílio (ed. Clandestina, 2017), As aventuras de Pinóquio, de Collodi (ed. Globo, 2010) além de várias traduções de poetas italianos e latinos espalhadas por revistas acadêmicas e não acadêmicas. Atualmente, trabalha numa tradução da Divina comédia, de Dante, em parceria com Emanuel de França Brito e Maurício Santana Dias para a Companhia das Letras.

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