Cine África, Universiflix, Godard ao vivo: será a transmissão de filmes on-line revolucionária?

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Por Pedro MC

A superestimulação e hiperinflação de imagens eletrônicas pode criar uma nova carne. Audiovisual de ficção, reunião ao vivo e registro do real criam um corpo simbiótico, que funde tempo e projeção de desejos, mediados pelo consumo. Essa é minha descrição do filme Videodrome, de David Cronenberg (1983). A nova carne brota como uma mão-arma da tela da TV.

Cena de Videodrome, de David Cronenberg, 1983. Reprodução

Hoje, junho de 2020, é possível assistir ao Videodrome aqui na tela do seu celular, ou onde você estiver ligado, enquanto passa na linha do tempo de sua rede social o assassinato de uma pessoa negra por policiais fascistas. Ou um menino negro deixado no elevador pela patroa branca de sua mãe diarista em Recife, para cair do nono andar. A cada minuto uma nova notícia, não menos revoltante.

Há uma gigante oferta de imagens na palma da mão. Neste artigo proponho uma investigação sobre a importância da curadoria: curar, no sentido tutorial, e da cura, da ação sobre o tempo.

A representatividade negra no momento em que o racismo estrutural é evidente e o futuro das plataformas digitais convergem como temas principais na nova carne.

Nunca tivemos museus, bibliotecas, cinematecas, videolocadoras e canais de TV, abertos ou fechados, com tanta oferta na linha. São dezenas, talvez centenas de plataformas de transmissão ao vivo ou sob demanda disponíveis na internet, agora.

Algumas estão com catálogo aberto, suprindo uma reivindicação essencial de conteúdo nunca antes navegado, como é o caso do catálogo da Mostra do Audiovisual Negro – APAN aberta e gratuita no SPCine Play.

Conversei com curadores, críticos de cinema e estudantes. A partir da pergunta “qual o papel das plataformas abertas de filmes na linha”, tracei relações com as questões de mercado e com a inevitável e imprescindível insurgência contra o racismo.

Questões para pensar o cinema e a sociedade

Com acontecimentos em tempo real, como o assassinato de George Floyd, as questões na narrativa, da escolha de conteúdo e o mundo pós-pandemia estão em plena profusão. Para Ana Camila, curadora e fundadora da Mostra de Cinemas Africanos, o cinema não acabou. É momento de investir na seleção de filmes transmitidos na linha.

Perguntei ao artista e pesquisador Lau Santos sobre a representatividade negra nas plataformas de conteúdo e como ele vê o cinema e o teatro pós-pandemia.

O lançamento da Universiflix, em 28 de maio, é um marco histórico. Conversei com as fundadoras da plataforma, Bruna Teodoro, Camila Comandolli, Sergio de Almeida P. Machado (Cid), e Drielly Moreira.

Com Cid, aproveitei para perguntar sobre a disciplina Cinema Negro na UFSC, e como ele vê o momento de manifestações com o estopim do assassinato de George Floyd e a representatividade negra no audiovisual.

Em seguida ao lançamento da Universiflix, começou o We Are One, parceria do YouTube com alguns dos maiores festivais de cinema do mundo. A programação aberta segue até 7 de junho, demarcando um novo capítulo na história do audiovisual.

Para fechar a investigação sobre o futuro das plataformas e “segmentação de mercado” (obras de gênero narrativo), o crítico de cinema Chico Fireman dá sua opinião sobre o caminho que vem a seguir.

Torrentes

No dia 25 de maio, por conta de vídeo gravado com celular, o assassinato de George Floyd pela polícia viralizou e incendiou o mundo. Dias após o mundo pegar fogo, Spike Lee lança um curta-metragem associando o assassinato do personagem Radio Raheem (sufocado pela polícia) com cenas da realidade. 

Cena do assassinato do personagem Radio Raheem, em Do The Right Thing, 1989. Reprodução

Em Faça a Coisa Certa o assassinato do jovem negro, estrangulado, sufocado pela polícia branca, foi o estopim para a insurgência nas ruas.

Assista ao curta-metragem lançado dia 31 de maio de 2020 3 Brothers, um mash-up de Radio Raheem, Eric Garner e George Floyd, de Spike Lee aqui.

A notícia em tempo real é a nova carne que Cronenberg previu nos anos 80. Só que o modo de pensar mudou, não é mais a CNN ao vivo que impõe limites de interpretação, nem a ficção tem tempo de revelar o que outrora sempre existiu.

A CNN ao vivo escancara, como a Globo News, e outras corporações de conteúdo, que o racismo é base estrutural mais do que se imaginava. Ou não haviam meios de se escancarar em tempo real. Então a nova carne pode ser produzida por conteúdo feito pelas pessoas nas ruas, e compartilhado na rede.

A esse fenômeno se impõem paradoxos, da superestimulação e direcionamento.

Ao Vivo

Godard é um cineasta que desde os anos 60 já havia quebrado com o “direcionamento” da narrativa em seus filmes. Ao menos desde La chinoise, de 1967, suas imagens são propostas para que o olhar as instigue.

A fragmentação, o “jump cut” e as sobreposições são conjuntos abertos nos quais o espectador pensa por si mesmo. Ou tem que pensar por si mesmo, porque as personagens não seguem um roteiro de ação > reação prontos.

A esse campo relacional o jornalismo e a publicidade são antagônicos, pois dirigem, mastigam e digerem a reflexão. A guerra hoje é quem vai controlar a memória. Por isso o governo Bolsonaro propõe acabar com a Cinemateca e o Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional).

Em La Chinoise, Gordard propôs um pensamento sobre jovens que estão pensando se a manifestação terrorista contra o sistema totalitário é uma opção. Manifestação antifascista de quebrar tudo, mesmo.

Plano e contra-plano de “La Chinoise” de Godard, 1967. Reprodução

Em 07 de abril, Godard estreou numa transmissão ao vivo, direto de sua casa (onde já vivia recluso antes da quarentena). Falou que pensa que o cinema é como um antibiótico.

Correntezas

  • Dia 25 de maio: assassinato de George Floyd.
  • Dia 26 de maio: transmissão das imagens do assassinato.
  • Dia 27 de maio: lançamento da plataforma Universiflix.
  • Dia 28 de maio: abertura do We Are One festival no YouTube.
  • Dia 31 de maio: Spike Lee lança curta-metragem “3Brothers”

À superestimulação e inflação de imagens faltam, na mesma medida, a escolha. O papel da curadoria é fundamental para indicar sentidos. Na SPCine Play, por exemplo, temos à disposição e gratuito seis filmes de Rogério Sganzerla, lançados no dia 4 de junho de 2020. E também uma seção da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, com registro da performance do grupo Cena 11. E muito mais.

São dezenas de ofertas que antes não tínhamos.

E em oposição, para tanta oferta de conteúdo falta a curadoria, a divulgação e um caminho para encontrar o público (ou o público se encontrar). Além da hiperinflação de oferta, temos as questões de mercado. O tema principal, acredito, é como o capitalismo vai se apropriar das plataformas de conteúdo, das discussões sobre racismo, identidade, e qual o perigo da privatização da memória e da educação. 

Se este não for o momento de se discutir isso, quando vai ser?

10 perguntas sobre o cinema negro

Sessão da Mostra de Cinemas Africanos. Foto: Alf Ribeiro

Ana Camila

Jornalista, produtora cultural e pesquisadora no âmbito do doutorado sobre as narrativas da vida cotidiana nos cinemas africanos contemporâneos. Idealizadora e curadora da Mostra de Cinemas Africanos (Brasil) e do projeto de cineclube Cine África. É curadora colaboradora do Africa in Motion Film Festival (Escócia)

A Mostra de Cinemas Africanos vem para se estabelecer como um evento itinerante que coloca o Brasil na rota de circulação dos cinemas produzidos na África e sua diáspora. O evento possibilita que o público brasileiro acompanhe os lançamentos da cinematografia do continente e que crie repertório sobre ela.

1. Em 16 de maio começou a primeira edição do Cine África | Em Casa, com o filme Mossane (1996), da cineasta senegalesa Safi Faye (mulher pioneira na realização de longas-metragens no continente africano). O que te fez mover para criar a ação e quais seus planos de financiamento?

Ana Camila – O Cine África é um braço da Mostra de Cinemas Africanos, tem uma proposta de formação, como um cineclube, e costumava acontecer na cidade de Salvador (BA) em uma sala de cinema do grupo Saladearte. 

Nosso objetivo é sempre ampliar o repertório de cinemas africanos no Brasil, com filmes legendados em português, e o que o contexto de pandemia nos inspirou a fazer foi reunir pesquisadorxs sobre África e cinema em todo o Brasil e produzir conteúdo sobre os filmes. 

Cartaz do projeto Cine África / Em Casa. Reprodução

Estamos trabalhando neste momento com filmes já disponíveis na internet, e toda a produção é autofinanciada. Esse formato surgiu com a pandemia, mas acredito que existe uma demanda muito grande por um serviço de streaming voltado somente para os filmes africanos, e este projeto está no meu radar. 

Atualmente estamos em busca de parceiros investidores para seguir adiante e acreditamos muito na potência de público de uma plataforma como essa. Mas o streaming não é uma novidade e o contexto de pandemia apenas colocou esse formato mais em evidência do que antes, por ser por ora a nossa única opção. 

Porém não se resolve o “problema” entregando de graça todo o conteúdo para o público, uma vez que o licenciamento on-line é uma importante fonte de monetização para os profissionais da indústria do audiovisual. Ainda temos muitas questões para resolver nesse sentido.

2. Como você vê o mercado de exibição e distribuição no Brasil, relacionado ao cinema africano, antes e depois da pandemia? 

Ana Camila – É difícil falar de algo que não existe (risos). São raríssimos os casos de filmes africanos distribuídos no Brasil, especialmente quando se trata dos cinemas dos países subsaarianos. 

Entre esses casos raros temos o mais recente, Rafiki, filme queniano que estreou em Cannes em 2018 e se tornou um grande sucesso no mundo inteiro. Aqui no Brasil foi distribuído pela Olhar Distribuição e Ipecine, duas distribuidoras independentes que tiveram a coragem de apostar em um filme com forte apelo junto ao público – uma coragem que não vemos muito entre grandes distribuidoras daqui, ou mesmo nas grandes entre as independentes. 

Nora e Bakoso AfroBeats de Cuba – Filme Bakoso, 2019, no catálogo da Mostra de Cinemas Africanos. Reprodução

Filmes do Egito, Marrocos ou da Tunísia entram bastante nos circuitos “de arte”, mas filmes de muita qualidade de países como Nigéria, África do Sul, Etiópia ou Quênia, só para nomear alguns, estão fora do radar das distribuidoras brasileiras. 

A pandemia não parece ter afetado em nada esse cenário no Brasil, que é um cenário absolutamente invisível para as distribuidoras. Recentemente escrevi algumas matérias comentando a ausência de filmes africanos em plataformas de streaming que atuam no Brasil e que oferecem legendas em português, e a situação é desanimadora. 

Cena de Rafiki, de Wanuri Kahiu, Quênia, 2019, no catálogo da Mostra de Cinemas Africanos

Acesse aqui um guia de filmes africanos para ver durante o isolamento social – Delirium Nerd e onde assistir as produções recentes dos cinemas africanos.

Mesmo a Netflix, que possui muitos títulos em seu acervo, parece reduzir África a Nigéria e África do Sul, o que é no mínimo um equívoco.

Lau Santos

Artista e pesquisador em artes cênicas e do audiovisual em interface com expressões artístico-culturais de matriz africana. Professor da ETUFBA (Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Doutor em Teatro, Pós-doutor em Dança

3. Hoje, com a superestimulação de filmes disponíveis na internet, como você vê a representatividade negra? E como você vê o cinema pós-pandemia, em relação à interatividade? Um pós-cinema?

Lau Santos: Bom, passamos por um momento importante quanto a ideia de re/presentatividade do negro na sociedade de maneira geral. A morte de George Floyd está sendo o estopim para uma série de reinvidicações que ficaram pendentes desde da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos (1955 a 1968). 

No Brasil, o movimento negro sem muita possibilidade de se expressar politicamente e artisticamente, menosprezado pela esquerda “ gingava ” nas favelas, e assim produzia sua forma de resistência e resiliência contra a ditadura militar e o racismo da elite branca brasileira.

 O cinema, sobretudo o Cinema Novo, mostrava o lado romântico e folclórico das expressões de matriz africana, aqui falo  principalmente dos filmes de Nelson Pereira dos Santos. São registros importantes pela inserção do conteúdo no universo cinematográfico, mas não são suficientes em um contexto histórico racista.

Algumas experiências pontuais como a do filme O Anjo Negro, de José  Umberto, buscaram outros ponto de vista sobre o negro no cinema. 

Pois bem, desde da “abolição da escravidão” o negro viveu em uma “encruzilhada- de-talvezes“, como afirmou Lima Barreto e que eu estou retomando em um artigo. 

Cena de Supa Modo, do diretor queniano Likarion Wainaina, no catálogo da Mostra de Cinemas Africanos. Reprodução

Pois bem, dentro dessa percepção de Lima Barreto, acredito que o cinema negro, a arte negra de forma geral, principalmente a feita por negr@s, deveria superar a ideia de produção e inserção de conteúdo. Nós cineastas negr@s devemos superar a ideia de produção e inserção de conteúdo e partir para experimentos estéticos que desconstruam os padrões estéticos cinematográficos e teatrais hegemônicos, eurocentrados, impostos por uma ideologia colonial. A ideia é buscar uma estética de encruzilhada, que abra os caminhos da linguagem audiovisual para outros pontos de vista, enfim, uma estética, sinuosa, pautada na sincopa, uma estética pelintra.

Acho, e aí, me posiciono como ” fazedor” e pesquisador da arte negra, que devemos (e tento fazer isso) buscar nas cosmovisões africanas a base de nossas proposições  estéticas. 

O entendimento de corpo, espaço, tempo, ritmo, movimento etc é diferente, aqui não faço juízo de valor. Produzir arte afrorreferenciada é, a meu ver, pensar sob a luz dos códigos afrorreferenciados.

4. E como a distância pode ser meio criativo? Pode o cinema e o teatro sofrerem mutação?

Lau Santos – As experiências  desenvolvidas hoje por jovens cineastas negr@s com dispositivos da tecnologia digital são  muito importantes. Quase todo mundo tem celular, o problema é ter acesso, quantidade dados etc para acessar o material  audiovisual.  

E isso  podemos expandir para a educação à distância de maneira geral. Como professor, aqui, na Escola de Teatro da UFBA, junto a colegas temos pensado possibilidades para entender esse momento pandêmico e manter uma relação com os/as estudantes. Tivemos o Congresso da UFBA, que devido à pandemia foi virtual e teve 30 mil inscritos com várias mesas. Tudo feito virtualmente. Tenho acompanhado  experiências inovadoras em cinema como o cine-janela, projeção nas paredes dos edifícios etc.

Registro do projeto Cine-Janela em Salvador, abril de 2020

Pensar as artes cênicas, artes da presença de maneira  virtual é  um desafio. Como superar a ideia de encontro psicofísico, elemento fundante dessas artes? Eu defendi  uma tese que discute a ideia de presença expandida, que atua nos entre-lugares: real/ virtual, fisico/imagético, teatro/audiovisual etc. 

Para finalizar, sim, acho que após pandemia deveremos pensar outras artes que se fundamentam em um teatro, ou cinema com características de séculos anteriores.  

Será outra coisa. 

O teatro e o cinema de sala, de encontros e pipocas continuará, talvez com menos pessoas por vez. Esse ritual nunca acabará, será ainda uma opção humana de encontros presenciais. 

Assim como as rodas de samba, de jongo, de capoeira. O que surgirá daqui por diante será outra coisa, e para citar um titulo de livro de Beckett: o que surgirá ainda é INOMINÁVEL.

Universiflix

Fundadores Bruna Teodoro, Camila Comandolli e Sergio de Almeida P. Machado (Cid) do Curso de Cinema, e Drielly Moreira do Curso de Filosofia da UFSC.

5. Parabéns pelo lançamento da plataforma Universiflix, em 28 de maio. Inaugurado por estudantes de Cinema e Filosofia, existe um recorte temático para entrar no catálogo, ou os estudantes com filmes podem enviar?

Universiflix – Um dos principais critérios é que a obra audiovisual tenha sido produzida durante o período de estudos (por isso pedimos comprovante de matrícula em alguma instituição de ensino). A plataforma não está restrita exclusivamente a universitárias(os), mas também escolas livres de cinema e secundaristas. Também não é exclusiva para estudantes de Cinema, portanto  diversos cursos podem participar. 

O objetivo é que possamos dar visibilidade à produção audiovisual que é produzida em larga escala por estudantes de todo o Brasil.

6. O Brasil desponta com plataformas inovadoras como Afroflix e Darkflix, focadas no cinema de gênero, e de festivais que estão migrando para transmissão online, como a Mostra de Cinemas Africanos no projeto Cine África Em Casa. Em todos os casos depende de tempo e investimento. Vocês têm um plano de negócios ou a plataforma também é colaborativa no financiamento?

Universiflix – Neste momento contamos com uma equipe de quatro pessoas, todas estudantes universitárias em formação. A plataforma é gratuita e sempre será! 

No entanto, desde o lançamento o número de inscrições de obras vem aumentando bastante, inclusive a de filmes de fora do país, como Argentina. A ideia do projeto não visa uma lucratividade. Por enquanto, nossa única fonte de financiamento é por meio de doações que servem para manter a Universiflix em constante funcionamento e atualização.

Pensamos em futuramente iniciar uma campanha de financiamento coletivo por meio de plataformas de crowdfunding porque, felizmente, a demanda de trabalho está aumentando por conta da boa recepção da iniciativa pelo público.

7. Desde a criação do Curso de Cinema da UFSC, aproximadamente 15 anos atrás, já se notava a demanda por uma plataforma de exibição. Hoje já se sabe o volume de obras realizadas por estudantes? Tem um perfil de temas, alcance de festivais, e outros indicadores? Qual é a cara do estudante de cinema no Brasil?

Universiflix – Ainda não temos noção do volume de obras produzidas por estudantes, afinal não há uma cultura estabelecida dentro do ambiente universitário de compartilhar todas as obras que são produzidas, nem dar a devida visibilidade dessas obras como expressões artísticas de grande valor. 

Plataforma Universiflix, Reprodução

Nosso desejo com a criação da plataforma é justamente colaborar para que essa tendência mude. Parte da equipe criadora da Universiflix também foi curadora de um festival de cinema universitário que aconteceria em março na UFSC. O contato com obras de estudantes de todo o país pareceu nos dar um panorama interessante da ampliação de diversos temas que se repetem, como os ligados às questões raciais e de gênero. 

Parece que a produção universitária de cinema segue uma tendência muito parecida com a das grandes produtoras quanto aos gêneros cinematográficos, ou seja, produz-se muito documentário, ficção e animação, respectivamente nessa ordem. 

Faz-se mais documentários ainda por causa dos baixos custos de produção. Essas características parecem estar se repetindo nas obras que estamos recebendo. 

Chico Fireman

Jornalista e crítico de cinema filiado à Abraccine, membro do podcast Cinema na Varanda

8. Está acontecendo uma revolução de exibição e distribuição de filmes? 

Chico Fireman – Acho que vivemos um vácuo enorme entre o “fim” das locadoras e a popularização dos serviços de streaming. Foram anos em que filmes mais antigos, alternativos, especializados, experimentais, de origens menos convencionais, sumiram de nossas vistas. 

Era impossível ver vários clássicos do cinema porque simplesmente eles não estavam disponíveis nos streamings. O surgimento de canais mais específicos, que privilegiam esses filmes, me pareceu um caminho natural. 

Há um público pra isso, interessado em conhecer, descobrir — se bem que eu acho que ele encolheu um pouco por causa do empobrecimento dos catálogos dos grandes streamings, que compram filmes “por pacote”, ignoram os clássicos, vão nos alternativos mais famosos e investem na produção própria. 

Impressão de tela da plataforma Afroflix, criada pela cineasta e curadora Yasmin Thayná

Mas o surgimento do Darkflix, Oldflix, Belas Artes À La Carte e o crescimento do Mubi no Brasil mostra que há um caminho bem sólido pra estes filmes, sim.

9. O mercado vai se apropriar dos canais segmentados?

Chico Fireman – Acho que a tendência é surgir cada vez mais canais especializados. A questão é o quanto o mercado vai conseguir acomodar. Mas vejo um grande potencial para se explorar. E o desafio maior é informar que estes canais existem e mostrar sua relevância.

Sergio de Almeida P. Machado (Cid)

Um dos fundadores da plataforma Universiflix.

10. Cid, como você vê o momento de manifestações em todo o mundo com o estopim do assassinato de George Floyd e como vê a representatividade negra no audiovisual? Você me falou que foi criada a primeira disciplina de Cinema Negro no país, me fale como foi e o porquê.

Cid – No momento em que respondo o corpo de George Floyd ainda não foi enterrado. Num mundo de imagens, em que elas podem ser elemento de revolta legítima, mas também de fetiche de mercadoria, temos que tomar cuidado com as representações midiáticas dos símbolos que são apropriados pela grande massa!

Uma frase de Will Smith voltou a se propagar nas redes sociais: “o racismo não está piorando, está sendo filmado”. Esse é um ponto crucial da discussão, porque a disseminação das imagens da violência racista que matou Floyd se transformaram num estopim legítimo de revolta. 

Grafite num muro nos Estados Unidos, em 4 de junho

Mas a sociedade branca tem que entender que não estamos revoltados de agora, dessa semana. São séculos de Floyds, João Pedros, Marielles, irmãs e irmãos que são tirados de nós todos os dias e nunca são ou serão filmados/gravados. Não podemos legitimar só o que aparece na tela a nível global. 

Já que se fala tanto em racismo estrutural atualmente, temos que fazer com que o combate a ele seja estrutural também. Enquanto eu escrevo essas linhas, centenas de pessoas pretas estão morrendo da mesma maneira por violência policial pelo mundo. 

E a urgência do apelo popular não pode ser seletivo e as ações não devem ser limitadas às redes sociais. Todos os protestos devem acontecer como uma defesa, por qualquer meio necessário contra o racismo. 

Temos que dizer: basta! Mas quem não é preto vai sustentar a hashtag até quando? Semana que vem? Mês que vem? Depois de amanhã?

Combater o racismo estrutural só é possível combatendo a raiz de sua origem, o sistema socioeconômico que o criou, o capitalismo. Pra ser antirracista é preciso ser anticapitalista, pois estas posições são indissociáveis!

O racismo está sendo filmado, como diz o Will, mas e as(os) pretas(os) amando, vivendo, sorrindo, vencendo, como estão sendo filmados? Acho que essa é a nossa postura enquanto realizadoras(es) audiovisuais. 

Representar outras possibilidades de r(e)xistência) para os nossos. Não deixar de mostrar a violência que nos oprime, mas ir para além disso. Já chega de imagens só de dor. 

Queremos imagens de afeto! Essa é a nossa luta no audiovisual.

Cena de Rafiki, de Wanuri Kahiu, Quênia, 2019, no catálogo da Mostra de Cinemas Africanos

Diante dessa e de outras questões, por exemplo, estudantes da UFSC junto a professora de Cinema da mesma unidade criaram a primeira disciplina de Cinema Negro da história das universidades brasileiras. Isso mesmo, a primeira! 

E não queremos que seja a última. Queremos que ações concretas sejam tomadas para além de frases de efeito ou marcações digitais. Nossa carne ainda é barateada no pixel e na película e nosso sangue não precisa ser mais filmado e gravado pra entretenimento, mas pra possibilidades de tomada de ações conscientes. 

Nossa história no cinema brasileiro e mundial deve sair do desfoque e das margens do quadro e assumir seu lugar de direito, o primeiro plano. É pra isso que disciplinas como essas são criadas.

Afinal

A investigação proposta nesse artigo indica um momento inédito. Com conteúdo disponível de filmes em plataformas digitais sendo de fato uma evolução. Será uma revolução? As relações de mercado e incentivo para plataformas públicas, com acessibilidade, são fundamentais para combater o fascismo pseudo-liberal. 

O governo brasileiro atual pretende fechar a Cinemateca Brasileira, enquanto estuda meios de impedir a taxação sobre veiculação de filmes estrangeiros nas plataformas digitais. A manifestação em frente à Cinemateca em São Paulo foi transmitida ao vivo. A memória é uma arma em mãos.

Enquanto não temos mais cinema como experiência presencial, podemos abrir flanco no mercado, defender a Cinemateca, os incentivos e tocar fogo nos racistas. Agradeço o espaço e a disponibilidade do(a)s entrevistado(a)s.

Vida longa à nova carne! 

Pedro MC é cineasta e programador da @sessaocinematica 

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