À distância: uma aula de Cinema em tempos de quarentena

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Cena do filme 2 Coelhos (2012), de Afonso Poyart.

Por Mara Salla em 20 de março de 2020.

Enquanto preparo a aula da noite, minha vizinha Abigail pergunta no grupo da rua no WhatsApp:  “quem gosta de goiaba”?.

Às 19h05 eu tinha 100% da turma presente na webconferência. Foram 40 minutos intensos. Aproveitei para mostrar os materiais que tinha colocado na Midiateca (local para disponibilizar materiais e conteúdos como vídeos, PDFs, PowerPoint, Word) e falar da orientação de leituras. De que página a que página eles teriam que ler os textos disponíveis ali: Eisenstein, Murch, Nogueira e um curso que preparei durante a semana, para tratar de algumas escolas e estilos de montagem cinematográfica.

Na segunda-feira, dia 16 de março, por volta das 17h, a Unisul publicou a suspensão das aulas de todos os cursos presenciais. A suspensão, prevista até dia 31 de março, orientava para os atendimentos de nossos estudantes de presencial para o EaD (Ensino à Distância), em alinhamento às determinações das autoridades da área da saúde. Embora a instituição trabalhe com EaD há mais de 20 anos, o uso das ferramentas das salas AOL para quem trabalha na presencial foi uma mudança radical, porém decisiva. O uso que muitos colegas faziam da sala era para suporte e envio de algumas atividades avaliativas.

De uma hora para outra, aproximadamente 1.000 professores passaram a ter o Espaço Virtual de Aprendizagem (EVA) como seu meio possível de dar continuidade as aulas. Por conta da necessidade de suspendermos as sessões de cinema, na sala de Cinema do Centro Integrado de Cultura (CIC), em Florianópolis, atendendo as medidas que o prefeito adotou ainda na sexta-feira (13/3), nos antecipamos e trabalhamos no sábado e domingo, prevendo que as aulas presenciais corriam um risco imenso de suspensão. Quando saiu o comunicado oficial, na tarde da segunda-feira (14/3), as professoras Ramayana Lira e Nadia Neckel e o professor Demétrio Panarotto e André Arieta, que atendem na segunda-feira à noite, estavam aguardando seus estudantes às 19h, no espaço virtual. E com poucas ausências, nossos estudantes chegaram no horário marcado! O Centro Acadêmico tinha a informação de que se a medida de suspensão fosse adotada, as aulas aconteceriam virtualmente.

Embora essa agilidade possa ter amenizado um pouco o impacto dessa transposição, ainda levaremos um tempo para entender as inúmeras possibilidades que o EaD permite. Em tempos de suspensão do presencial, a oportunidade de aprendizado é de todos nós. Em meio à quarentena, a compreensão tem sido uma exigência de professores e estudantes. Temos recebido o apoio das turmas e vamos atendendo as solicitações conforme chegam.

Enquanto isso, no grupo da rua

Em áudio, no grupo  do Whatsapp, Rosana, a vizinha da casa verde, que fica três casas à direita da minha, diz que gosta das mais verdes. Abigail responde que vai separar uma sacola com goiabas mais verdes, e que o seu filho vai levar. Pede pra Rosana esperar no portão.

Grazi, também pelo WhatsApp, avisa em nosso grupo chamado Lulus, apelido dado pelo professor Ralf quando estudávamos Cinema na Unisul, que está saindo do hospital. Está com princípio de pneumonia, mas agora sem febre. Uma médica a monitora a cada duas horas. Enquanto leio isso, várias mensagens se acumulam no grupo (somos em quatro: eu que moro em Palhoça, Gra em São Paulo, Carol em Urubici e Deborah em Miami). Entendi que uma das mensagens em áudio era da Carol. Pela resposta da Gra, deduzo que Carol falou algo relativo ao privilégio dela ter condições de ir ao hospital e ter esse tipo de monitoramento…

Peço pra ela se cuidar e que depois eu leio as mensagens, pois vou entrar em aula. Junto com uma carinha de espanto, aquela que parece remeter ao quadro O grito de Munch, ela pede pra eu cancelar a aula! Aviso que todos os cursos presenciais agora atendem virtualmente. Sem tempo para detalhar a situação, mando foto de onde atendo as aulas e os professores dos cursos: DVDs, dois computadores e alguns livros sobre a mesa: estou trabalhando de casa, tranquilizo-a. Saio do celular e começo a testar o som e a imagem da transmissão. Mal inicio o teste e Clayton – suporte da webconferência da aula de hoje – dá feedback de que tudo está ok e deseja uma boa aula. Ele fica online até que a transmissão seja encerrada.

Aviso que na ferramenta FÓRUM (espaço para desenvolver a atividade, que permite o debate comigo e com xs colegas) deixei um link para o filme 2 Coelhos, de Afonso Poyart, e que para a próxima aula eles precisam publicar a análise da montagem do filme para conversarmos a respeito. Esse filme tem um atravessamento importante com a linguagem de videoclipe, por isso serve como referência para a montagem dos videoclipes que faremos até o final do semestre. Se formos mais adiante com essa suspensão das aulas presenciais, será possível mantermos esse exercício. Trabalharemos em grupos nos quais bastará uma pessoa com computador e um programa de edição em casa. Mudaremos o material bruto apenas, informo. Levei dias pensando em como adaptar essa atividade e como passar essa informação.


Alexandre diz que gosta mais maduras porque prefere fazer suco. Rosana diz que estavam ótimas e agradece. As pessoas vêm até o portão e Hugo, filho de Abigail, entrega as sacolas de goiabas, conforme o gosto da vizinhança. Em meio ao preparo da aula, antes da transmissão, parei para colocar um coração e duas carinhas, aquela que tem corações no lugar dos olhos, no meio dessa conversa. Preciso ficar atenta a dois horários, um da live do professor Mauri e outro para assistir ao filme novamente antes da aula.

Do presencial ao virtual: “é como mudar de país”

Professor Mauri emociona, mas tenho que ver o filme e não dá tempo para comentar no grupo de gestores. Vejo que a professora Virginia, coordenadora do curso de Direito, comenta do orgulho que sente em trabalhar aqui. Entendo e concordo com ela, assim como concordo com os analistas que apontam que em meio a essa crise, as instituições educacionais com tradição e experiência em EaD serão as que sobreviverão. Um novo áudio chega e tenho que ouvir: preciso pedir aos professores para usar sistematicamente o espaço AOL. Também em áudio, aviso que na segunda-feira, às 19h, os professores do curso estavam com a sala aberta, materiais postados e aguardando os estudantes, deixamos tudo pronto no domingo, informo. Achei estranho ouvir isso na sexta-feira, e entendi que se não tivesse entrado para a Unisul Virtual em dezembro passado, estaria com muitas dificuldades agora, como alguns colegas devem estar.

Apesar da excelência do suporte que a Virtual dispõe e da dedicação em atender todo mundo, para quem atende na presencial, e precisa de uma hora para outra passar a atender na virtual, é como mudar de país sem falar a língua do novo lugar. Uma questão é quanto as ferramentas que uma sala AOL disponibiliza, a outra é pegar um plano de ensino, planejado e trabalhado desde 2019.2 e tentar levá-lo, sem alterações, para esse novo espaço quando completávamos um mês de aula.

Nem tudo funciona. O maior trabalho é de ajustes e adaptações para fazer com que a aula aconteça e que a formação esteja garantida. E está! Respondo aos estudantes que sentem o baque de uma semana de isolamento social. Estamos prontos para aguentar se for necessário.

O trabalho nos bastidores é intenso, se temos condições de tocar dentro desse novo formato é porque temos uma gerência que funciona e ampara com suas equipes, porque acima dela temos a direção de campus, ligada e antenada, parceira e presente. E porque somos regidos pelo professor Mauri, um ex-padre que exala uma sacralidade quanto à educação que fazemos, e com isso alimenta nossa alma. Foi o professor Della Giustina, um dos fundadores, quem disse que a Unisul possui alma. Será que é da Unisul que vem a ideia de sala de aula como local sagrado, penso, e para pensar em algo que me divirta. Concluo que o fato de ser ex ajuda muito nessa questão.

2 Coelhos e um fórum ativo

2 Coelhos é um filme brasileiro que trata de uma vingança muito bem arquitetada. Mas também posso dizer que é um filme que trata da reconstrução do mundo de Walter. Parece que estamos diante de um cara, Edgar, que tem uma vida facilitada pelo pai, que para livrar o filho das consequências de um atropelamento o mantém dois anos em Miami, acobertado pela absolvição dada por um juiz que, por sua vez, estava acobertado por um político corrupto.

Conforme o filme avança, vemos que são várias narrativas que se desenrolam dentro desse enredo. E elas vão se encadeando, dando ritmo e consistência à história e ao protagonista, simbolizadas algumas vezes por perseguições de carros no emaranhando das ruas do centro e da periferia de São Paulo. Com o uso de inúmeros elementos gráficos, efeitos especiais, desenhos, inserções de texto, interrupções bruscas mas precisas, retomadas sem perder o fio da meada e que fazem a trama avançar, o protagonista narra e acrescenta mais uma camada entre as tantas que o diretor utilizou para criar uma atmosfera de imersão na vida e nos acontecimentos das personagens.

Deixei no Fórum uma orientação de análise e falei dela durante a webconferência, a turma foi interagindo desde o início da aula, tirando dúvidas e pedindo para repetir quando não estava claro. Maria Leticia ia colocando os links tão rápida quanto me vinham referências, com as quais ia costurando a aula. Bruna, uma das primeiras a chegar, já veio empolgada, espalhando uma energia linda em nossa sala AOL. Todxs estavam bem, iam escrevendo. Eu estava conseguindo manter uma linha narrativa de uma aula mais convencional, até a Camila dizer que “ tudo isso que está acontecendo é uma locurada”. Depois dessa palavra que sintetizou nossa quarentena, senti que minhas intervenções foram perdendo alguma tensão com que eu tinha iniciado a aula. Não consegui não rir muito dessa observação dela.

“Os filmes funcionam porque sonhamos”

 “Locurada” exprime bem a situação que estamos vivendo, e mesmo sabendo que em breve a interrupção da aula me faria sentir distante deles novamente, comecei a olhar para cada estudante com um amor imenso. Acho que a saudade que estou sentindo deles reativa uma relação sagrada que existe entre professora e estudante e, por algum motivo que essa quarentena nos impôs, isso também nos aproxima. Eles sempre foram muito queridos e carinhosos, uns mais e outros menos,  mas sempre tivemos uma boa relação. Só que hoje foi diferente. Juntos fomos criando um clima, e quando vi, estava falando apaixonadamente a respeito de uma das leituras, quando, segundo a Camila eu comecei a dar spoiller do livro.

Essa Camila tem palavras bem certeiras pras coisas que acontecem, pensei. O tempo que acabaria em breve, me fez acelerar e dar intensidade a observações pontuais de Num piscar de olhos, de Walter Murch. “Ele estabelece duas das mais belas analogias que eu já li”, disse, percebendo que o tom entusiasmado tinha aumentado. “Os cortes remetem ao piscar dos nossos olhos, e por isso funcionam!” e ainda, segundo ele, os filmes funcionam e fascinam porque sonhamos! Pensem em como é linda essa ideia: os filmes funcionam porque sonhamos! Vocês estão sonhando que são uma espécie de ser humano numa fase primitiva de desenvolvimento, pegam um osso e começam a bater em outro. Esse osso bate diferente e sobe muito alto no céu, e de repente vocês são uma espécie muito evoluída que estão explorando outros planetas e viajando em naves pelo espaço”. 

2001 – Uma odisseia no espaço, de Kubrick, apresenta isso para um publico em 1969!!! Pensei: em 1969 eles nem eram projeto de gente e eu tinha 1 ano de idade. Acho que eles também sentem saudade e falta de nossos encontros presenciais. Quando o sistema avisou que a transmissão estava próxima do final, eu disse que os amava e eles retribuíram colando corações como resposta. Eu sei tão pouco dessas criaturas que passam 4 anos em minha companhia, e depois somem  no mundo. Eu nem sei se eles gostam de goiaba, e se gostam, se preferem verde ou madura, por exemplo!

Não sei quase nada deles, mas eles funcionam em mim porque sonho.

Podemos fazer tantas conexões ao mesmo tempo. Nada impede que vejamos imagens e sons em outras coisas, enquanto estamos olhando e fazendo outras completamente diferentes. Foi Virginia Wolf quem conseguiu expressar isso de forma tão linda, primeiro?!

A montagem cinematográfica tornou essas percepções visíveis. Por isso é possível sonhar com um mundo lindo onde as pessoas vivem em segurança, onde tem respeito, amor, carinho e oportunidades para todos. Embora saiba que o mundo não seja assim, sei e vejo que existem universos habitados por pessoas que fazem mundos assim.  Hoje de manhã, enquanto respondia a respeito da alocação dos professores que iniciam as aulas do segundo período do curso de Produção Multimídia, entrou um vídeo de uma italiana agradecendo – de forma irônica – pela ajuda que EUA, França e Alemanha não deram ao seu país. Um texto exageradamente ufanista, diria, se não entendesse que aquele texto havia nascido em uma Itália que estava contabilizando um número absurdo de mortos em um único dia.

Também vi um vídeo em que um escultor italiano intimava o papa Francisco a comprar máscaras e respiradores com o ouro existente no vaticano. Basta de chiacchierare!, honre o seu nome fazendo como fez São Francisco, dispa-se dessa riqueza e salve as pessoas, disse ele! Ele agradecia as orações, mas pedia ações. Orar é importantíssimo, mas as ações são fundamentais, principalmente agora.

Que bom que eu sempre pisei nos estúdios e na ilha de edição como quem pisa em solo sagrado, a saudade de dar aulas nesses espaços seria maior agora, se não tivesse essa postura sempre que entro ali.

Acordei com torcicolo. O corpo diz que a tensão está grande.  Vejo meus colegas fazendo um trabalho imenso para que nenhum de seus estudantes sintam o impacto da mudança, ajustando e adaptando planos de ensino. Logo perceberam que se quisessem dar aula na virtual, deveriam fazer ajustes e adaptações na mentalidade com que se atende na presencial.

Mentes e corações ocupados

A cena inicial de 2 Coelhos começa com o protagonista acordando de um sonho. Ele acorda e pisca algumas vezes, como para se livrar das imagens que o sonho trouxe do atropelamento.  O final do filme é redentor. Entendemos que Edgar não era tão egoísta quanto parecia e que fez o que fez para dar a Walter, justamente o que ele havia perdido. Edgar havia matado no atropelamento a esposa e o filho de Walter. E ele reconstrói a vida do cara.

Hoje vi, mesmo distante, os olhos compreensivos deles. Vi um carinho imenso nas respostas que escreviam no chat: “Sim, tudo bem. E você?” A depender dos estudantes que tenho, temos uma nova chance de recomeçar a partir de uma nova estrutura. Ficaremos algum tempo em isolamento social, e sei que tenho estudantes que estão aqui, morando em Palhoça por causa do curso. Estão longe de suas famílias e nesse momento estão sozinhos dentro de casa. Então, para evitar desdobramentos que podem derivar do isolamento social, optamos por não seguir rigorosamente uma das leis que rege o EaD, a de que o ensino é assíncrono. Temos horários marcados e isso manterá nossas mentes ocupadas e nossos corações próximos, temos horários de encontro de segunda a sábado, e nos encontraremos nesses dias e horários. 

Adapto as aulas para que os filmes que assistiremos não tenham uma carga dramática tão pesada. Que tenham beleza e criatividade, que tenham complexidade na forma de contar, mas que tratem de amor, de amizade, de poesia. Arte aliada à disciplina que teremos para manter a rotina das aulas. A trilha de 2 Coelhos, com a música Paciência de Lenine, diz:

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para
Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora vou na valsa
A vida tão rara

Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência
O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência

Será que é o tempo que lhe falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber 
A vida é tão rara (tão rara)

Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Mesmo quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para 
A vida não para não…

Enfim, na próxima aula vamos falar da montagem desse filme, que mistura inúmeros elementos, que mistura várias histórias, que segura e retoma, que confunde os tempos intencionalmente, que acelera, diminui e cria novos ritmos sem perder o interesse do público para o desenrolar dos acontecimentos. Tentei escrever com isso em mente, dando ao texto uma mistura de histórias. Meu publico é você, que ao perceber que a aula estava acabando, foi enchendo meus olhos de amor.

Se tiver sobrado goiaba, na casa da Abigail, vou deixar uma verde e uma madura na porta da casa de cada uma e cada um de vocês, farei isso em pensamento, então não se espantem se sentirem o cheiro da fruta aí, não será do nada. Quando essa locurada passar, vamos brindar a vida que pede uma mudança de paradigma. Não tem mais lugar para um mundo onde 3% da população detêm a riqueza e os demais vivem com o que sobra. Não adiantam agora castelos e fortalezas. “A natureza se regenera”, diz meu mentor que me alimenta com vídeos lindos, enviados no WhatsApp, “o que tem que mudar é a mentalidade do ser humano”.

Itália e China nos ensinam a necessidade da quarentena.

Ascolta/escuta diz um vídeo belíssimo em que a terra narra, em italiano o que lhe acontece.

Resistire diz outro que traz a música que ouvimos na cena final do filme Ata-me,  de Almodovar.

Olhem para a palavra usada pela Camila, tirando o “lo” e fiquem com “curada”, e exercitem o olhar. Vejam o que seremos: uma humanidade curada.

Aguentem firmes.

Vocês não estão sozinhos, estamos aqui com vocês. 

Mara Salla é professora de Cinema e de Produção Multimídia da Unisul.

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