Novo livro de André Timm expõe preconceitos em trama com haitiano e jovem trans no Oeste de SC

Compartilhe

André Timm. Foto: Felipe Ballin

Em Morte Sul Peste Oeste, o escritor André Timm traz um recorte, apoiado à trajetória de Dominique, sobre a chegada dos imigrantes haitianos ao Brasil pouco tempo depois do terremoto que assolou o Haiti em 2010, que somou ainda a grave crise econômica que se seguiu à tragédia. Paralelamente, conta a história de Brigite, que não se reconhece no corpo com o qual nasceu. É uma menina transexual de 13 anos, assolada pela desigualdade social, o abandono parental, pela dependência química da mãe e por toda a violência que rodeia a bela cidade arborizada e limpa do Oeste catarinense.

Nascido em Porto Alegre e radicado em Chapecó desde 2004, Timm é autor de Insônia (2011) e Modos Inacabados de Morrer, romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura (2017) e publicado na Itália em 2019. Nesta entrevista à escritora e jornalista Patrícia Galelli, ele fala sobre o exercício da alteridade para compor Morte Sul Peste Oeste, a extensa pesquisa e escancara o racismo, a xenofobia e a homofobia — que parecem ficção, mas não são — de uma região próspera e impregnada de preconceitos.

O livro já está em pré-venda pela Editora Taverna.

ENTREVISTA

Morte Sul Peste Oeste recorta um contexto em que não se falava muito das questões de gênero e ainda se tentava manter velado o racismo evidentemente entranhado no nosso país. Quase uma década depois, seu romance volta aos primeiros contatos que os catarinenses, em especial os residentes em Chapecó, tiveram com os refugiados. Quando e de que maneira se deu o processo de elaboração do livro?

Antes de tudo, é muito interessante sua percepção acerca do tempo em que se passa a narrativa no livro, que a princípio, parece ser diferente da minha. E eis aí uma das belezas da literatura, esses diferentes entendimentos, decorrentes, provavelmente, de uma mistura entre aquilo que a obra de alguma forma coloca ou sugere e nosso próprio repertório. Embora eu não tenha marcado cronologicamente o tempo presente da narrativa (creio que não, ao menos), e apesar de recorrer ao recurso das analepses (as voltas no tempo) nas passagens que retomam o terremoto no Haiti, em 2010, sempre a imaginei mais próxima do nosso tempo. Mas eu, de toda forma, acredito que não haja tanta diferença assim nesse espaço de uma década. Nem aqui, nem no Haiti, que continua convulsionando. Mas volto a falar sobre isso daqui a pouco.

Sobre a elaboração da obra, como é comum a muitas das narrativas que desenvolvo, a concepção de Morte Sul Peste Oeste começa com uma imagem. Ou, mais precisamente, com uma cena. Exatamente a mesma que abre o livro. Um plano muito aberto, um ônibus pequeno atravessando uma paisagem muito árida. A câmera aproxima uma vez e vemos o ônibus mais de perto. A câmera aproxima outra vez e vemos, através de uma janela suja, o perfil de um homem negro. Imediatamente associei a imagem deste homem a um haitiano. E a partir daí, comecei a desenvolver a estrutura narrativa, que ganhou também a presença de Brigite, uma personagem cujo embrião vem de um conto escrito há muitos anos, desenvolvida porém à luz de novas referências, pesquisas, estudos e entrevistas. 

No seu primeiro romance, Modos inacabados de morrer, você narrou a história de Santiago em segunda pessoa, jogando para o leitor a possibilidade de se colocar no lugar do protagonista e se imaginar nas situações submetidas pela narcolepsia. Agora, em Morte Sul Peste Oeste, Dominique e Brigite são personagens com experiências que também são muito distantes da sua. Evidentemente, como escritor, sua pesquisa para compor o livro foi extensa. Como se deu a escolha da voz narrativa desta vez?

Se em Modos Inacabados de Morrer a condição de Santiago, um grau severo de narcolepsia, me levou a uma enorme pesquisa, Morte Sul Peste Oeste demandou um trabalho ainda mais intenso devido à responsabilidade que construir esses personagens significa. Naturalmente, estou emulando vivências absurdamente distantes da minha. Isso, por si só, implica muito estudo. Foram meses e meses lendo, assistindo a documentários, buscando artigos e em alguns momentos entrevistando pessoas. Sei que ao adentrar esse terreno, arriscado, estou sujeito aos questionamentos de lugar de fala, com os quais não concordo quando se trata de ficção. A literatura é o próprio exercício da alteridade, do colocar-se no lugar do outro.

Se estivéssemos autorizados somente a escrever a partir do nosso lugar de fala, a literatura estaria em sério risco. Todavia, eu acredito na importância da representatividade. Acredito inclusive que a falta dela é o que nos leva a questionamentos como o do lugar de fala na ficção. O Brasil é um país imenso, múltiplo, diverso. Carecemos de representatividade na autoria e também no mosaico de personagens que habitam nossa literatura. Quero acreditar que ao trazer para a narrativa personagem que estão à margem, estou ajudando a dar um pequeno passo em direção a uma literatura mais representativa das minorias, sempre desejando que, cada vez mais, as próprias minorias tenham as condições de criar seus próprios personagens, sejam eles quais forem, e lançar seus próprios livros. Tudo isso, é claro, falando de uma perspectiva de proporcionalidade, pois exemplos isolados disso já acontecem.    

Como foi a construção de um personagem como Dominique, cujos traumas que viveu, a que sobreviveu, foram ainda somados ao racismo e à xenofobia com que foi recebido no Brasil? E quanto à Brigite, que, mesmo numa das fases mais complexas da vida como é a adolescência, demonstra uma força inabalável frente ao preconceito?

Dominique é pai. Perdeu uma filha e precisou deixar um filho no Haiti. Creio que parte do exercício de construção é buscar sentimentos em que a dor venha de lugares semelhantes. Eu nunca perdi um filho, nem vivi um terremoto ou precisei passar pela situação de abandonar minha família, mas sou pai. E o sendo, consigo me colocar num lugar de dor ao imaginar como seria se as coisas que aconteceram aos filhos de Dominique acontecessem com minha filha. Isso é parte do processo, que se soma a tudo aquilo que decorre das leituras, das entrevistas, dos filmes, artigos, documentários.

O que se fala sobre os haitianos nas redes sociais: prints reunidos por Timm. Reprodução

Brigite foi um processo ainda mais delicado. Quem consegue imaginar tudo que significa sentir-se um migrante no próprio corpo, exceto quem vive esse dilema? Mas o escritor precisa ser uma espécie de cavalo, para emprestar um termo do candomblé, precisa se permitir tentar incorporar, se colocar no lugar daquelx que é objeto de estudo e observação e permitir-se o download do máximo de percepções e sensações que conseguir. Com sorte, você sai desse processo com parte daquilo que precisa para construir um personagem verossímil, tridimensional, que soe real e salte das páginas.

Devo apontar também que Bruna Sofia Morsch, mulher trans, psicóloga/psicanalista e escritora, foi de uma generosidade enorme ao compartilhar suas percepções sobre Brigite, percepções que vêm não apenas de sua vivência de mulher trans, mas de seu repertório técnico e de sua formação. Nahun St Julien, migrante haitiano, também foi muito solícito ao compartilhar comigo sua jornada.

No contexto de Chapecó, também duas histórias andaram paralelamente modificando a paisagem da cidade na mesma época. A chegada dos imigrantes haitianos, a partir de 2010, retratada pelo enredo de Morte Sul Peste Oeste, mas também a criação da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), criada em 2009. Dois abalos à casa velha e mofada do conservadorismo de uma comunidade que, sem generalização, endossa ainda hoje a narrativa do colono desbravador e trabalhador, ícone da imigração europeia – “casa mofada” para citar a moradia coletiva dos haitianos, que aparece no seu livro. O que mudou nessa década em que a região passou a ter esse espaço de produção de conhecimento, reflexão, pensamento e que acolhe a diversidade?

Veja, não sou muito otimista em relação a esse aspecto. Adoro Chapecó, foi a cidade que nos bem acolheu quando saímos de Porto Alegre, a mim e minha esposa, há 15 anos. Minha filha nasceu já aqui. Mas somos brancos, de classe média. Creio que não teríamos uma recepção tão calorosa assim se fossemos, por exemplo, haitianos. Não podemos esquecer que Bolsonaro foi o mais votado em 266 cidades de Santa Catarina. E que em Chapecó ele obteve quase 65% dos votos. Não estou insinuando que todo eleitor de Bolsonaro seja racista ou xenófobo, mas é inegável que muitos de seus seguidores endossam seus posicionamento retrógrados e inclusive o admiram por isso.

O frenesi com expressões como “Sou homofóbico, sim, com muito orgulho” ou aquela que afirma que os imigrantes são “a escória do mundo” estão aí pra comprovar isso. Também podemos lembrar que Santa Catarina é um estado que abriga inúmeras células adormecidas (e agora nem tão adormecidas assim) de organizações neonazistas. Aconselho ainda a prestar atenção acerca do que se fala sobre os haitianos nas redes sociais. A título de exemplo, deixo algumas prints de comentários recentes.

A rotina em uma linha de corte continua sendo algo brutal. Algumas coisas no livro são acrescidas de tintas mais exageradas para carregar no efeito dramático, mas em outras, até onde tenho conhecimento, fui bem fiel à realidade. O número insano de repetições e movimentos que alguém faz por minutos em uma linha de corte, e as consequências decorrentes disso, são exemplos concretos. Será que há dez anos era pior? Provavelmente. Estamos próximos do ideal hoje? Creio que não. Há gente nova por aqui e a Federal, sem dúvida, ajudou a construir um novo olhar, novos vieses, mas ainda temos muito a fazer.  

Morte Sul Peste Oeste, de André Timm (2020). Editora Taverna.  

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *