Próxima Parada: Ana Araújo

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Presença

Por Ana Araújo

De repente, o velho fantasma sai do armário. Literalmente: abro a porta procurando uma meia, e ele sai. Estou diante dele, no meio do quarto, paredes brancas, algum mofo, o armário, a cama, o cabideiro. Desta vez não é o homem do cabideiro com sua sombra corcunda. Não. É o fantasma em carne e osso, e mostra-me os dentes. Há mortos que têm todos os dentes.

Penso que devo ser gentil, e também mostro meus dentes, em uma espécie de sorriso trêmulo. Quero chorar, mas represo todas as águas, e sinto o sangue empurrar com força a parede das artérias. O fantasma me oferece água. Agradeço. Agradecer é um modo estranho para dizer que recuso.

Vejo a porta do armário, aberta às minhas costas, por um espelho enviesado atrás da porta entreaberta do quarto. Percebo que não foi o fantasma quem saiu do armário: ele sempre esteve ali, do lado de fora, à espreita. E eu, que sempre soube, fingi desconhecê-lo, abri a porta e dei um passo. Para fora.

Saí e não desejo voltar. Mas o ar me falta como se permanecesse lá dentro, quando vejo diante de mim o velho conhecido, com seu cheiro nauseabundo de porra dormida.

A expressão soa totalmente inadequada, eu sei. É que não há metáfora, nesse caso. Há um velho armário de madeira inchada, o verniz descascando, imagens de jornais de 50, 40, 30, 20, 10, 2 anos atrás, misturadas em um mosaico de mulheres nuas. Tentei admirá-las para evitar notar que o corpo nu era o meu. Tentei amá-las, amar-me.

Enquanto tento me fazer entender, com palavras cada vez menos claras, o fantasma destila ódio. Fala de coisas que fiz, de coisas que não me lembro de ter feito, fala de um amor que desconheço, me oferece um abraço que me arrepia: um abraço sem tato.

Desvio dos braços do fantasma, e rumo para a porta do quarto. O fantasma fala em legiões, e pergunta: “Sabe quantos demônios formam uma legião?” Tento contar os diabinhos, me entreter com eles, mas minha matemática me escapa. Os diabinhos são rápidos como pequenos elétrons, e picam. Mas me fazem sentir viva, como os pernilongos nas noites de praia, e sinto algum amor por eles.

Os diabinhos me escapam e o fantasma continua ali. Ele soluça de ódio, e baba, e tem os olhos vermelhos, e conta uma história que não compreendo. Não o mataram, mas ele crê que nenhuma morte é uma fatalidade. Lhe disseram coisas, e ele rememora palavras soltas, para justificar sua sanha. Ele me toca o braço com a ponta dos dedos, e sinto asco. Me retraio, quero vomitar.

Dou um passo atrás, e o cheiro de guardados do armário, com um pouco de sândalo, me acalma. Sinto o sangue mais lento, ritmo de lama densa. Fecho as portas atrás de mim e me escoro nelas. Decido aceitar alguma bebida. Não creio que seja uma boa ideia, mas não tenho outra, visto que o fantasma guarda a porta do quarto. Quem sabe ele se embriague e durma antes de mim.

*

Desperto deitada no chão, as costas geladas, o quarto escuro. Não vejo nada. Escuto minha própria respiração e um turbilhão de pedras e águas. Sinto frio e quero palmear o chão por uma coberta, mas tenho medo de tocar o outro corpo ao meu lado. Sei que o fantasma não está longe, sinto sua presença fria.

Ana Araújo é mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), graduada em Letras/Latim pela mesma universidade, e em Letras/Português pela UFSC. É poeta do coletivo Abrasabarca (Florianópolis/SC), que publicou os livros Abrasabarca, (2018, editora Medusa) e Revoluta (2019, editora Caiaponte). Dramaturga, escreveu a peça ExataMente Elas, com a Em Companhia de Mulheres Coletivo de Pesquisa Teatral Feminista (Apresentada em Florianópolis/SC, 2016), e o texto para o recital dramático Beethoven: fantasia do imortal, (Belo Horizonte, 2019). Contadora de histórias, participou da Barca dos Livros Biblioteca de 2016 a 2019. Foto: Henrique Almeida

Próxima Parada: Dinovaldo Gilioli

Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.

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