Próxima Parada: Demétrio Panarotto

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Como dorme um sádico

Por Demétrio Panarotto

Samuel se perguntava o motivo de ter aceitado jantar com os pais da moça (com a qual andava de rolo) em uma pizzaria como aquela em que a medida dos ingredientes parecia rechear a fala dos presentes.

Era tudo absolutamente controlado.

Os gestos.

Os olhares.

Os movimentos.

O orégano.

O garçom em tempo em tempo em tempo marcava de modo acirrado em tempo em tempo em tempo cada movimento da mesa em tempo em tempo em tempo e manifestava em doses excessivas o tom prestativo de sua função. Era um tal de “estão bem servidos?”, “falta algo?”, “deixa que eu sirvo”, “senhor” pra cá, “senhor” pra lá, “imagina, senhor!”, “pode deixar que nós providenciamos, senhor!”

Samuel não precisava fazer esforço para se colocar no lugar do garçom, afinal já havia feito bico como tal em um boteco (desses que juntam estudantes sem grana) para engordar a renda mensal às vésperas de se formar.

Fazer bico é algo muito diferente da dependência que a função cobra.

Samuel não tinha dúvida disso.

Ao garçom restava a cordialidade. Não a dos homens cordiais, mas a dos homens que dependem da função para sobreviver. E o pano de fundo de uma cena como essa não passava de um Chroma key em que se percebiam os fantasmas das cores nas laterais.

Nem dúvida que as palavras que seguem resplandecem em sentidos.

Servis.

Servos.

Serviçais.

Serviço.

Não era um trabalho. Era um encosto para que pudesse permanecer vivo.

Difícil não se sentir incomodado numa hora como essa. Samuel pensava assim, mesmo sabendo que os demais naturalizavam. Somente.

O pai da moça, em close, considerava aquela jogatina de bajulações imprescindíveis.

Na fala e nos gestos daquele senhor de mais ou menos cinquenta anos, ficava evidente o ranço burguês, com raízes coloniais, de sempre achar que precisava de alguém para servi-lo.

E o velho gozava cada vez que a palavra “senhor” era pronunciada. Inflava o peito e mantinha o tom da conversa, com alguns jogos retóricos, com o intuito de evidenciar as fronteiras sociais.

Enquanto o garçom se derretia em sorrisos, cruzando a mão sobre a mesa para servir uma fatia de pizza de cogumelos com alho-poró, a fala atravessada era sobre a queda dos juros do banco central. O pai da moça emendava com certezas sobre a economia retomar o crescimento depois das atitudes drásticas do presidente. Até chegar a enunciar, com água na boca, que o Brasil se tornaria um país de ponta e que os jovens de hoje seriam os grandes beneficiados desse processo, que seu Timóteo chamava de renovação.

— Timóteo. Haha… duas vezes…

Puta nome feio esse, pensava Samuel com seus botões e com o olhar que não se descuidava da movimentação faca palavras garfo palavras boca palavras palavras palavras gole de vinho palavras pizza pizza pizza faca palavras garfo palavras guardanapo não palavras…

O pai da moça, sempre com alguns rodeios, estendeu a conversa até um brinde em um momento improvável. O brinde era para reforçar que, se quisessem — o rapaz e sua filha, como se estivessem assumindo um compromisso — estar do lado certo (daquele abismo social), precisariam se manter fiéis a determinados princípios, que ele insinuava escorregando propositalmente nas palavras para que a turbidez de sua fala se mantivesse.

Não era necessário muito esforço para entender que ele monetarizava por meio da tríade capital, católico e cristão.

Samuel, encolhido no corpo, brindou assim sem querer brindar, controlando-se para que sua taça não fizesse barulho algum no contato com as demais, como se isso fosse uma maneira de se resguardar daquele improviso sem graça.

Foi logo repreendido por seu Timóteo, que o percebeu com olhar fugidio:

— Olhar no futuro, meu jovem; disse pontuando as palavras em um tom de voz entusiasmado; — só assim poderemos acreditar que esse país será competitivo no mercado; e deu aquele sorriso azedo.

Sabem. Assim. No caso. Azedo.

Samuel sorriu também.

O sorriso de Samuel também era azedo.

Olhou de esquiva para a moça, que o olhava sentindo o seu desespero.

Mas ele tinha a impressão de que era apenas em partes que ela o entendia e de que, quando fosse a hora de optar pela parte que lhe fazia sentido, ela provavelmente não abriria mão do local em que se encontrava.

O lugar era fácil de identificar, uma garota de classe média, descolada, que fala outras línguas, que dá seus pitacos sobre música, cinema, literatura, que nas redes sociais defende as minorias, o meio ambiente, os animais, até feminista já se declarou, ah, e se dizia vegetariana com recaídas… todavia, essa aparente consciência em relação ao mundo provavelmente ruiria no momento em que o padrão social fosse abalado.

Esse era o nó.

Sorriu de novo.

Colocou a taça sobre a mesa e, meio constrangido, tocou na perna dela; por alguns segundos se distraiu escutando o pai enquanto pensava na cor da calcinha da filha. Será que Isabela continuaria, nos momentos de intimidade, ficando envergonhada do mesmo modo como tinha ficado na noite em que se despiram um para o outro pela primeira vez? Esse era o ponto que o conectava a ela. Um olhar, piegas como sempre parece ser, que não tinha encontrado nas outras garotas com as quais havia se relacionado, porém a conhecia há pouco tempo, e certa insegurança, que apenas o convívio pode vir a desmontar, permanecia latente.

Conheceu-a em um evento qualquer, meio sem querer. E, por distração, provavelmente por distração, o primeiro encontro chamou o segundo, depois um terceiro quase por acaso. Na sequência dos encontros, os dois toparam com o pai dela em um lugar improvável, essa topada acabou se transformando numa ponte para o jantar que acontecia.

Para ser sincero, esse primeiro encontro com o pai dela aconteceu num desses momentos em que a vida pega você com as calças na mão, querendo pular por uma janela que não existe.

Recordava que não havia tido nenhum tipo de reação quando cumprimentou o pai dela pela primeira vez.

Cumprimentar uma pessoa é diferente de vê-la discursando em prol daquilo que defende.

Na mesa, silencioso, Samuel parecia estar em um corredor em que as palavras passavam por cima de seu corpo e pisoteavam suas crenças.

O fato é que, em meio à fala do pai, à serventia do garçom, à disciplina auditiva da mãe e da filha, a vontade que sentia naquele momento era de gritar e mandar todo mundo à merda. No entanto, as convenções sociais, aceitas com o convite, traziam-no de volta para o plano terreno e ele ficava com a vontade entalada na garganta, dispersava para não surtar.

Como dorme um sádico? — perguntou-se depois de um gole de vinho e de olhar para o pai dela, que agora falava sobre as viagens que tinha feito com a esposa para a Europa. O velho burguês dizia que as viagens eram fruto de seu trabalho, assim como se o trabalho daqueles que o rodeavam não existisse.

Samuel respondeu mentalmente a própria pergunta no ruído da fala de mão única que seguia ditando a noite.

Um sádico dorme do mesmo modo que dorme os outros homens. Besteira pensar diferente. Todas as demais palavras e ou expressões, para um sádico, estão abaixo do capital. Esse é o ponto. O capital, reforço, está acima. Acima, reforço de novo, está o dinheiro. Parece baboseira, né, o capital e o dinheiro assim em evidência e como se estivessem separados. Abaixo o resto. Se essa gente tem dinheiro, essa gente dorme bem. Um sádico perde o sono somente quando perde dinheiro e, dependendo do dia, dorme mal quando não consegue inflar o peito no desespero servil daqueles que o rodeiam. E o sadismo aparece em notas ainda mais reluzentes quando o dinheiro vem fácil às custas do outro ou, suavizando, de uma malandragem no mercado financeiro. Desse modo, um sádico dorme colocando a cabeça no travesseiro. Dorme tendo escovado ou não os dentes. Dorme tendo trepado ou não. Dorme depois de ter tomado algumas doses de uísque importado. Dorme, que seja, abaixo de remédios. Dorme e pronto. Para aqueles que se perguntam se não há remorso, considerem que a palavra remorso não é usada por todos com o mesmo sentido. Ou, ainda, que há palavras que, providencialmente, não fazem parte do repertório de algumas pessoas.

Samuel quase entrou em transe percebendo as palavras fornicarem seu pensamento.

Quando retornou o olhar para o brilho da taça de cristal, ainda processando aquilo que havia pensado, escutou de novo o “sim, senhor” pronunciado pelo garçom e se percebeu em um jogo de uma pirâmide social em que sua posição, naquele momento — possível namorado da filha de um senhor que adorava colocar em prática seu sadismo —, era a mesma, talvez um degrau acima da do garçom, nada além disso. Pior, no final, mesmo que pudesse pensar que estava em outra posição, fazia parte do jogo como ele é.

Pelo simples fato de estar ali, o jogo também colocava as palavras “sim, senhor” em sua boca. Como se aceitasse tudo isso e pronto.

Era um serviçal de outra monta.

Poderia vir a ser outra coisa. Mas, em meio àquele jantar, não passava de um refletor do sadismo que escorria pelo canto da boca do pai da moça.

Era um bosta como são os bostas que dizem sim pelo fato de comungarem calados diante do descalabro.

Não obstante, a conversa parecia sempre suspensa no ar, com segundos interesses, sem o mínimo de sinceridade. Maquiada, pois os senhores da sociedade dependem da maquiagem para falar o que bem querem e fazerem o que bem entendem. Os sádicos sabem, e isso ficou claro para o quase namorado da moça durante a conversa, que sinceridade, para o mundo regido pelo dinheiro, é algo que não existe, nunca existiu e talvez nunca existirá (talvez o argumento não passe de uma brochada do narrador).

Existe, em meio a esses casos de serventia, o silêncio.

O silêncio em suas várias camadas e imbricado nas camadas sociais.

O silêncio é um monstro.

Samuel, que queria gritar, apenas aceitava o (e em) silêncio. E o fazia por acreditar que, em algum momento, Isabela pudesse pesar mais para a parte da estrutura em que acreditava se encontrar.

Bobagem.

Silêncio.

Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura (UFSC) e professor de roteiro no curso de Cinema da UNISUL. Músico, roteirista, poeta, escritor e idealizador do programa Quinta Maldita (na webrádio Desterro Cultural) e do PIPA Festival de Literatura (na companhia de Juliana Ben).  Publicou: Borboletas e Abacates (Argos, 2000); Mas é isso, um acontecimento (Editora da Casa, 2008, poemas); 15’39” (Editora da Casa, Alpendre, 2010, poemas); Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé (Lumme Editor, Móbile, 2009, livro/ensaio); Crônica para um defunto (dengo-dengo cartoneiro, 2013, poemas); O assassinato seguido de La bodeguita (Butecanis Editora Cabocla, 2014, contos); Poema da Maria 3D (Coleção Formas Breves, e-galáxia, 2015, e-book, conto); Ares-condicionados (Editora Nave, 2015, contos); A de Antônia (Miríade Edições, 2016, infantil); No Puteiro (Butecanis Editora Cabocla, 2016, poemas); Café com Boceta (Butecanis Editora Cabocla, 2017, poemas); Blasfêmia (Butecanis Editora Cabocla, 2018, poemas); 18 Versos para o funeral de Demétrio Panarotto (Papel do Mato Oficina Tipográfica, 2018, poemas), Tratamento da Imagem (Patifaria, 2018, conto); Arquipélago (Patifaria, 2018, infantil), Lotação (Medusa, 2018, poemas); Vozes e Versos (Martelo Casa Editorial, 2019, poemas, com Ana Elisa Ribeiro e Marcelo Lotufo). Responsável, ainda, pela Organização de: Livres Somos Versos, em parceria com Arlyse Ditter (ACB, 2018, poemas) e Cartaze, em parceria com Arlyse Ditter (ACB, 2019, poemas); Cerzindo e Cozendo (Butecanis Editora Cabocla, 2020, poemas) mais alguns discos e alguns filmes. Reside em Florianópolis-SC, Brasil. Foto: Acervo pessoal.

Próxima Parada: Cyntia Silva

Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.

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