Próxima Parada: Dennis Radünz

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No instável da foz do Itajaí-açu

Por Dennis Radünz

A maresia me chega como se eu tivesse bebido mar aberto. Toda maresia mora na premonição: é de se adivinhar, na foz da noite, o barco de ferro que atravessa o rio, de uma ribeira a outra, e descobrir, embarcado, o corpo de água que eu ainda sou. Ou desvendar os molhes da barra, as áreas de fundeio e os berços de atracação. Tudo o que é vivo divaga na desembocadura.

Venho do Pontal, no mundo a bombordo, e por mais que vague em linha curva na direção da terra firme, eu abandono, há um minuto, as duas margens. No ferry boat nada me margeia e consigo pressentir a mecânica dos ventos e as correntes oceânicas e o farol de Cabeçudas que faz luz de 14 milhas. Há ali, vão de Navegantes, a estibordo, os candelabros que, na verdade, são os guindastes de estiva; há o navio Hamburg Süd de cabotagem e de transbordo; há o escuro onde voam bacuraus.

Crédito: Cristiano Moreira

Não escuto aqui a música das buzinas – como a Vessel Orchestra (orquestra das embarcações), de Lilja Birgisdöttir –, por mais que se distinga na água atonal um mi menor. A água é o silêncio com marulhos. Eu capturo silhuetas, com olhos “de arrasto”, e o que morde minhas iscas são somente as barcaças que desovam entre docas, pelos píeres, contra os cais. São contêineres. As restingas. Os pescados.

Mas há o aviso de um perigo que me ameaça desde o embarque, há um minuto: ATENÇÃO, SENHORES PASSAGEIROS: POR MOTIVO DE SEGURANÇA E DE ACORDO COM AS NORMAS DA AUTORIDADE MARINHA, TODOS DEVEM SAIR DE SEUS VEÍCULOS POR OCASIÃO DA TRAVESSIA. Observo as boias de salvamento e as bicicletas e as motos e as solidões automotivas e pessoas passarinham para fora dos veículos. Todas elas obedeceram à voz que sobrevém do alto: AGRADECEMOS A SUA COLABORAÇÃO E DESEJAMOS A TODOS UMA BOA VIAGEM.

Mas eu que venho do Pontal, tão pedestre, devo sair de onde na ocasião dessa travessia? Vou abandonar as margens da minha pele e vogar como a substância que saiu do próprio em si? Estarei seguro fora dos pulmões, saído desse meio de traslado em que sou transitório e intransitivo? Mas o próprio barco de ferro não é o veículo, como a água é veículo do barco e a Terra inteira o das águas?   

Eu vou desobedecer à voz de cima e contrariar os tripulantes, por motivo meu de segurança: não saio afora das membranas, porque tudo o que é vivível se resguarda no envoltório. E aviso, agora, na “ocasião da travessia”, que fico aqui e sigo vivo no ar livre da foz do Itajaí-açu, o rio em que me nasceram. Ou me devolvam a passagem de R$ 1,12, mas em moeda viva, com meu direito de ir e vir invicto…  

Dois minutos se passaram nessa confusão e, repentinamente, o edifício Genésio Miranda Lins se aproximou e me veio a cidade (esse município que, medido pela vida útil dos pesqueiros de madeira, tem apenas a idade de uns seis ou sete barcos). Imagino que os nascidos nas ribeiras acreditem que – vistas da correnteza, deste barco de ferro que não diferencia a proa e a popa – essas duas cidades são o Outro Lado, porque rio não é lugar exato, é um extravasar-se. O rio se translocaliza.

Finalmente se aproxima, cedo, o minuto da atracação. Mal tive tempo de cogitar que o Pontal de onde vim irá desaparecer. Desaparecer não é exato: ele pode ou não ser escavado, afundado, abstraído. O seu braço de terra será cortado pelos cargueiros e “escalado” na Bacia de Evolução. Ou tomado pela sobrepesca. Talvez por causa da Autoridade Marinha, o bairro São Pedro deve sair do veículo em que aportou as suas casas, e ancorou a rede de ruazinhas, e embarcou as vidas nas virações ribeirinhas. No fim, o Pontal inteiro irá aterrissar tão fundo que só as réguas maremétricas irão vivê-lo: o seu endereço será, somente, uma suposição no estuário.     

Desembarquei e me vi a salvo por estar à margem, como se bebesse céu aberto. Sempre quis essa manobra de retorno, mas a melancolia se abeirou de mim, como se me atravessasse algo ainda não nascido: a embocadura sem rio, o ilocável da foz.   

Dennis Radünz vive na Ilha de Santa Catarina (Florianópolis), onde dirige a Editora Nave. Autor dos livros de poemas Ossama: último livro (2016, 2ª. edição: 2018), Extraviário (2006), Livro de Mercúrio (2001) e Exeus (1996, 2ª. edição: 1998) e o de crônicas Cidades marinhas: solidões moradas (2009). “No instável da foz do Itajaí Açu” – um híbrido de autoficção e documentário – integra a série 88.010-500: crônicas do mundo extrafísico, da qual faz parte o curta-metragem Ilha do Carvão (2016), de Dennis Radünz e Fábio Brüggemann: https://www.dennisradunz.com/ilha-do-carvao. Foto: Patrícia Galelli.

Próxima Parada: Daniela Stoll

Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.

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