Próxima Parada: Eduardo Sens

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A árvore do meu avô

Por Eduardo Sens

Meu vô ficou em cima da mesa de jantar por oito dias. Sei porque marquei cada um deles no meu caderno. Estávamos sem aulas na época. Ficamos, aliás, 93 dias sem aula, eu e o meu irmão mais novo, de cinco anos. Contei no calendário da agenda.

Bem que a minha vó disse que não devíamos ter vindo passar a quarentena com eles. Meu vô tinha asma, que é uma doença do pulmão. Ele não conseguia respirar direito. Tossia, fazia muita força para respirar. Talvez foi por isso que quando ele pegou o vírus ninguém notou. Era comum acordar com tosse, espirrar, usar aquela bombinha para colocar a respiração no ritmo normal.

O que não era comum era ver o vovô deitado no sofá, com febre alta. Fora a asma, eu nunca tinha visto meu avô doente. Eu estava ao lado dele, assistindo TV, quando notei que ele suava. Perguntei se ele estava com calor e ele disse que estava com frio. Não comentei nada com a vó porque achei que não era preciso. Hoje acho que foi errado, mas não falo isso pra ninguém.

Naquela mesma noite ele piorou. Ouvi a tosse seca durante a madrugada. Era uma tosse grudenta, que fazia o peito assobiar no final. Parecia que ele ia desmaiar quando então parava um pouco e recomeçava tudo de novo. Eu mesmo não consegui dormir. Rolei para todos os lados da cama, li umas cem páginas do Prisioneiro de Azkaban, tomei água, respirei vinte vezes, e depois mais vinte, do jeito que o pai tinha ensinado a dormir quando o sono não queria chegar. Sem chance, com aquele entra e sai do quarto dele. Fui lá conferir e a vó me pediu para ficar longe, porque, disse ela, o vô estava “muito, muito doente”.

Na manhã seguinte ele morreu. Aí é que começou a pior parte.

A vó ligou para o meu pai e para os meus tios. Quando chegaram, depois de chorarem —acho que os adultos choram porque vão ficar com muita saudade, e saudade antecipada dá muita tristeza mesmo —, meu pai começou a tentar ligar para a funerária. Ninguém atendia. Tentou em vários números, de várias funerárias; não podiam vir. Estavam, disse o pai, “todos muito ocupados”. É que, a minha mãe me explicou isso no quarto, no final do primeiro dia, estávamos no meio de uma pandemia, e isso significava que muita gente estava morrendo, principalmente os velhos.

Só sei que na manhã seguinte, quando acordei, tinham vestido o vovô com um terno preto e tirado ele da cama para colocarem o corpo magro em cima da mesa de jantar. Era ruim de ver no começo. O vovô estava com a pele bem branca, meio dura. Estava com frio, pelo visto. O Caetano tocou nele várias vezes. Eu só tive coragem de tocar uma vez. A pele era rígida, gelada, lembrava aquela gordura que fica em cima da carne do boi. Rezamos, pela primeira vez que eu lembro de termos rezado todos juntos. Enquanto a minha vó puxava a reza eu olhava para os pratos pendurados na parede, para o armário de madeira escura, para uma santa que tinha um bebê no colo e ficava bem no alto do armário. Depois meu pai foi de novo para o telefone. O tio Felipe também tentou, cada um no seu telefone. A tia Fernanda consolava a vó, com um chá. Naquela noite, mesmo com todos em casa, jantamos na cozinha, apertados. Meu pai comeu em pé. Foi um jantar silencioso. A mãe brigou com o Caetano, que queria contar piada na mesa. Ele chorou, sem entender que estavam todos tristes, e eu tive que levá-lo para o quarto para brincar e explicar. Com os olhos enormes esbugalhados, os olhos curiosos que ele fazia quando eu explicava alguma coisa, ele, no final das contas, parece que entendeu.

Assim foi também o terceiro e o quarto dia. A vó estava desesperada. Chorava cada dia mais e chegou a dizer que preferia morrer logo de uma vez a “viver tudo isso justo agora”. Finalmente uma funerária atendeu o telefone e disse que no dia seguinte conseguiria pegar o vovô para enterrar.

Que nada. Esperamos a manhã inteira. No meio da tarde o pai tentou ligar de volta. Ninguém atendeu. Ele, muito brabo, gritando no telefone, pegou o carro e foi pessoalmente até lá. Ficamos todos apreensivos. Durante a espera a vó não sabia se era melhor se arrumar para levarem o vovô direto para o caixão quando o meu pai chegasse com o carro da funerária, ou se era melhor esperar para ver se conseguiam mesmo vir. A tia Fernanda de vez em quando também chorava algo, soluçando, e os olhos estavam borrados de uma tinta preta usada para deixá-la mais bonita (não ficava bonita).

Não vieram. Os caras da funerária não vieram. Jantamos mais uma vez na cozinha. No meio do jantar, quando todos estávamos quietos e eu prestava atenção no estranho e triste barulho que fazem os talheres batendo nos pratos numa refeição silenciosa, a tia Fernanda começou do nada a soluçar e a chorar dizendo “isso não é certo, isso não é certo”. Olhei para o meu pai e ele, com um gesto, pediu que eu levasse o Caetano para cima de novo. De lá ainda eu ouvia a tia Fernanda chorar, cada vez mais alto. O corpo do vovô continuava na mesa da sala. Parecia que a barriga dele tinha aumentado e os lábios estavam mais inchados.

No sétimo dia desenhei a família inteira reunida, com o vovô deitado na mesa da sala ao centro, e colori com guache. O Caetano fez um desenho com lápis de cor. A minha mãe chorou quando mostramos os nossos desenhos. Chorou e saiu para o banheiro. Meu pai disse que estava muito bom, que “retratava a realidade desses nossos tempos sombrios”. Daqui a alguns anos, ele disse, o meu desenho poderia ser vendido para uma galeria de arte. “Vai valer uma fortuna.” Eu sorri e o Caetano deu pulos achando que ia ficar rico. Depois do café da manhã, ele e o tio Frederico pegaram o carro e disseram que tentariam na funerária de São Vicente, a cidade vizinha.

Exausto, suado, porque os dias estavam bem quentes, o meu pai voltou perto do almoço. O tio Frederico estava ainda na garagem, tentando mais uma ligação. A sala já tinha um cheiro ruim, de podre, que diziam vir do intestino do meu vô. Eles se reuniram na cozinha, só os adultos, e eu fui de novo com o meu irmão para o quarto. Pelo que entendi, o problema era dinheiro. As funerárias todas estavam cobrando muito caro para enterrar os mortos. Convenci o Caetano e fizemos juntos vários desenhos. Depois, pegamos nossa lata de moedas para entregar para o papai.

“É pro enterro do vovô”, eu disse, entregando nossas obras de arte e exatos vinte e sete reais e quarenta e cinco centavos. “Os desenhos você pode vender já.” Meu pai chorou. Nunca antes tinha visto ele chorar. Ele chorou por um tempo de pé, os lábios tremiam, e então se abaixou para nos abraçar. “Obrigado, meninos, vocês são demais.”

Devia ser muito mais caro do que o dinheiro que todos conseguimos reunir, porque, no dia seguinte, sem que a funerária tivesse vindo, meu pai e meu tio Frederico foram para o jardim e cavaram um buraco fundo e comprido. Demorou muito. Eles até tiraram a camisa de tanto calor que ficaram. Eu vi tudo da janelinha do banheiro, onde me pendurei com o apoio da banqueta de madeira. Lá no fundo do buraco colocaram o vovô, de roupa e tudo. “O certo era ter um caixão”, disse a tia Fernanda, ou pelo menos foi o que eu ouvi. A vovó chorava em silêncio um choro de lágrimas secas, mas mesmo assim secava os olhos com um lenço.

Em cima daquele monte de terra, bastante tempo depois, quando as aulas já tinham recomeçado, eu perguntei se podia plantar uma árvore. O vovô adorava jabuticabas. A vó deixou. Enterrei um broto bem verdinho. No Natal já era uma arvorezinha da altura da minha cintura. Batizamos a árvore de a Jabuticabeira do Vovô.

Eduardo Sens, Florianópolis, 1979, é autor dos romances “Adroaldo, de Majestosa”, “Os outros eus de mim mesmo” e “De quando éramos iguais”, este último eleito Romance do Ano 2019 pela Academia Catarinense de Letras. Em 2020 lançou seu quarto romance, “Domingo”. É autor de quatro livros infantis “O menino que adorava torradas”, “O meu meteoro de estimação”, “O mistério das crianças-zumbis” e “O Melhor lugar do mundo”. Foto: Winston Gambatto.

Próxima Parada: Demétrio Panarotto

Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.

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