Próxima Parada: Katherine Funke

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Suores noturnos (fragmentos)

Por Katherine Funke

(fragmentos de minha contribuição para um livro que ainda está em andamento, num projeto a quatro mãos em parceria com Patrick Brock, jornalista, tradutor, doutorando em Estudos Culturais na Universidade de Oslo).

1. A primeira dica para ficar bem quietinha com sucesso é, de fato, ficar bem quietinha de verdade. Se surgir a vontade de dizer algo, pensar em outra coisa. Não anote, porque anotar também é dizer. Não se pode dizer. Não se pode sequer pensar em dizer. Temos que ficar embaixo da mesa, temos que fazer isso. Abraço o pé da mesa e amo o fato de ela parecer um escudo bem grande. Sabia que não deveria ter colocado a casa na cara da rua. A porta não é um bom escudo. Em catorze minutos de tiroteio não dava para já saber que uma merda ia estourar aqui? Desde o início da quarentena escuto tiros disfarçados de rojões. Tenho certeza de que são tiros. Mas não sei de onde vêm. Vocês sabem? Justificar a presença do Exército nas ruas sempre foi o objetivo abjeto deste governo. Primeiro armaram seus aliados. Armaram fortemente. Fizeram treinamentos policialescos. Todos se tornaram máquinas mortíferas. De palhaços a máquinas mortíferas, em três anos de dura batalha pelo desvio de verba federal para a compra de armamentos e o ocultamento de campos de treino de tiro ao alvo. Com alvos humanos, vivos, desviados igualmente pelo governo, desaparecidos de hospitais, de presídios, gente que não tem ninguém, pedaços de gente que ninguém quer mais. Esses palhaços sem cérebro são do mesmo tipo que atiram nas escolas americanas, que fazem massacres em massa. Agora estão aqui também no nosso país doente. Prontos para eliminar os que ainda não se infectaram pelo vírus, os que divulgam ideias de distanciamento social, os que se recusam a voltar ao trabalho e às atividades normais enquanto não houver uma vacina para o Sars-CoV-2. Mas talvez também matem os doentes. Não é? Os muito doentes. Não tem mais lugar nas UTIs e ninguém quer ir para os hospitais de campanha. Antes morrer em casa. Com ajuda dos filhos. Morrer em paz.

3. Quatro da manhã. Não dá pra dormir. Sintam esse cheiro de carcaça. Está entrando pela janela. Feche a janela, Rejane. Isso aí é cheiro de carne envelhecendo. Apodrecendo. Em algum lugar muito perto. Temos que ficar bem quietinhos embaixo da mesa, não podemos sair. Fica parado, filho, fica parado, homem, escuta, eles estão vindo, são botas, é uma tropa. Quietos. Vieram para matar os que sobreviveram. Rejane, não chore. Quietos!

6. Dentro do carro com rótulo de “Vigilância Privada” da rua, me arrependo no mesmo instante em que fecho a porta. Não deveria ter aceitado a carona. A estranha abre um sorriso tenebroso e avisa que faremos um passeio antes de me deixar em casa. Está chovendo. A motorista é loira. O carro é bonito. Plotado: Vigilância Privada. Uma caveira adesivada em cada porta. Não demora nada para ela vendar meus olhos e ameaçar me algemar se eu tentasse alguma coisa com as mãos. Mas sou passiva. Obedeço dali em diante, como uma pessoa na cadeira do dentista. Ela diz que eu posso chamá-la de Linda e para o carro perto de algum rio. As águas me acalmam. Linda explica que depois de conectar o aparelho R5G-600 nas têmporas, ele iria rapidamente implantar o chip Mini-On nos meus lóbulos da extrema-direita e neutralizar todos os demais que porventura estivessem ativos. Lembro do protocolo de segurança. Começo a tossir secamente e sem fim, como se estivesse com Covid-19. Com um soco rápido no centro do peito, ativo a válvula do Liberta-1968-Beta, localizado no centro do peito, que rapidamente aciona um escudo interno imperceptível, por baixo do epitélio, contra qualquer ação externa em qualquer parte do meu corpo físico. Quando me mandaram à Terra disseram que seria necessário usar essa tática em algum momento. A motorista me espera parar de tossir. Então manda manter a cabeça parada e me faz sentir o cano de sua pistola por entre minhas costelas. Digo que tudo bem ela instalar o que quiser instalar, desde que me deixe em casa depois, como prometido. E relaxo. O Liberta-1968-Beta imediatamente dispara sua miríade de sensações extravisuais que me transportam discretamente de volta para de onde eu vim. Sinto o escudo interno se instalar por baixo da pele. Não dói. Fecho os olhos por debaixo da venda e deixo o vento terrestre alisar minhas têmporas por baixo do R5G-600. Escuto um clique. E então ela diz: pronto. Mini-On instalado. Linda me parece tão feia agora. Sinto saudades de casa. Continuo quietinha e minhas saídas oculares continuam vendadas. Ela liga o carro e avisa que vai me levar de volta. Liga o rádio. Escuto notícias do julgamento dos crimes contra a humanidade cometidos pelo presidente. Juro que escuto: “a ereção dos membros da mesa” – em vez de “a eleição dos membros da mesa.” Não digo nada. Logo em seguida a vigilante recebe um chamado para voltar à base. Linda me ajuda a sair do carro depois de tirar a venda. Entro em casa e, com um outro soco no peito, libero mais um ciclo de Liberta-1968-Beta, para encerrar sua ação, conforme as orientações do treinamento. Percebo um olho nascendo no meu cotovelo esquerdo. Efeito colateral. Arranco-o logo, antes que me denunciem. Testo novamente a mesa como escudo. Continuo bem quietinha.

8. Acordo com um estrondo. Pior do que quando o sagui morreu eletrocutado. Um estrondo terrível. Uma bomba. Depois de alguns dias virá o cheiro de carne podre – estou ligada no cheiro de carne podre – essa bomba que explodiu não foi a primeira. Eles vêm logo depois, colocam os corpos dos doentes, ainda vivos, todos numa casa. Jogam álcool por tudo e depois a bomba, para ser mais rápido. Não escolhem ninguém. Os corpos já haviam sido despidos. Seus anéis, joias, relógios, todos cooptados pelo Exército. Os familiares pensam que essas pessoas ainda estão nos hospitais de campanha. Mas é lógico que não estão. Representaria custo demais tratar todo mundo. Só ficam no hospital as pessoas que atendem a certos requisitos. Não sei quais são.

12. Meu sonho de hoje: suado. Tu me contavas algo, angustiado. Acho que era sobre falta de grana. A grana, a falta de grana, entre a gente. Na tua voz. A lamúria. Do teu lado, à esquerda, nos sentarmos juntos. O chamado. Eu mesma lutava. A falta de grana. A esse ponto. Um porto. Não sei por que fiz a besteira de pegar no teu braço. Sentir tua pele. Acariciar essa pele como se me fosse desde sempre permitido. Ela tinha uma tatuagem que envolvia o bíceps. Era delicioso tocar o desenho. Uma águia. Tua pele. Era permitido. Quase tão bom quanto chocolate. Mas ouvimos um grito lá fora. Estávamos numa espécie de sala de espera com muitas cadeiras, sentados na primeira fila. Te vi saindo ainda mais preocupado do que antes. Pele, chocolate, nada. Permaneci imóvel, esquerda, do teu lado, esperando a coisa ruim lá de fora passar. Você não voltou. Sinistro. Fiquei sozinha, com um pouco de medo. Apreensiva, sozinha. Te amando, sozinha. Suada. Suja. Mas com um sorriso só meu, beatitude única de nós dois.

Katherine Funke tem sete livros publicados, sendo o mais recente “Nunca fui anjo, nem princesa” (conto, 2019, Butecanis Editora). Em 2017, fundou a Editora Micronotas, com a qual publicou, em 2020, obras de César Aira e Arturo Carrera, expoentes da literatura argentina contemporânea. Em 2019, teve contos publicados pela revista Palavra, do Sesc, e na antologia dos 15 anos do coletivo Edições K, além de poemas publicados pelo portal Ruído Manifesto. Durante a pandemia, colaborou por dez semanas com o jornal Süddeutsche Zeitung, da Alemanha, com uma coluna semanal no caderno de cultura, dedicado a receber diários da pandemia de seis países, com Sayara Murata, do Japão, Kristen Roupenian, dos Estados Unidos, Felwine Sarr, do Senegal, Khaled al-Khamissi, do Egito, Zukiswa Wanner, do Kênia, e V. Ramaswamy, da Índia. Foto: Gerald Campos.

Próxima Parada: Beatriz Kestering Tramontin

Próxima Parada é o projeto de literatura da Revista Gulliver idealizado pela escritora, jornalista e artista Patrícia Galelli. Um espaço de difusão semanal de pessoas que escrevem em Santa Catarina sem um recorte de gênero, mas da produção num espaço geográfico, livre de estereótipos e que ganha leitores além das fronteiras. É uma viagem para conhecê-las, cumprimentá-las, acessar um recorte do mundo que criam.

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