As formas do demônio e do terror moderno

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Se houve um movimento realmente expressivo do gênero nesta década, ele não tem o nome de “pós-horror”, uma bobagem proposta por Steve Rose, do The Guardian, que tentava enquadrar  de forma elitista filmes como A Bruxa, Corra e Demônio de Neon dentro de um subgênero do horror. A ganância de Rose por reconhecimento fez com que decidisse fundar uma expressão, algo que, ainda bem, é cada vez mais visto com ironia. O verdadeiro movimento do gênero que influenciou o excepcional momento que vivemos desde 2010 provém do cenário independente, onde realizadores propuseram o mumblegore. Diretores como Ti West, Simon Rumley, Adam Wingard, Simon Barrett e E.L. Katz praticamente fundaram um cenário em que cineastas com recursos financeiros precários criavam obras com pouquíssimos jump scares (acredito que Hotel da Morte tenha a maior quantidade), homenagens às décadas de ouro, muito assassinato e atores que apareciam na maior parte das obras como favores ou por salários irrisórios. Não era incomum, por exemplo, que A.J. Bowen estivesse em todos os filmes ou que diretores participassem dos filmes uns dos outros, tal como Ti West em Você é o Próximo. Com a guinada dos cineastas para filmes mainstreams, seguindo o caminho de James Wan, o subgênero passou a perder força, já que seus fundadores começaram a financiar projetos maiores e deixar o horror independente de lado. O caso mais aparente, por exemplo, é de Adam Wingard e suas tentações ambiciosas com Death Note ou A Bruxa de Blair.

É com bons olhos, portanto, que Josh Lobo retorna às raízes do mumblegore no seu debut chamado I Trapped The Devil: uma obra deliciosamente insana que retrata a paranoia de um homem que pensa ter prendido o diabo dentro de seu porão. Buscando ter o controle sobre o mal, o personagem Steve procura também controlar a sua própria sanidade. Aos poucos, porém, ele descobre que jamais teve o domínio de nada e que as conseqüências de parentes o visitarem na véspera de natal farão com que a criatura em sua casa possa finalmente liberar a destruição sobre sua vida e a vida de quem ama.

Foi Shakespeare quem disse que o demônio tem o poder de assumir uma forma doce e convidativa. A arte sempre se orientou pela beleza poética do satânico – embora, não deixe de ser verdade, essa admiração tenha passado por diversas formas. Se no cinema, Mefistófeles representava as primeiras incursões da imagem diabólica e cínica no cinema mudo, com o tempo essa face foi passando pelo “diabo em pessoa” (Haxan – A Feitiçaria Através dos Tempos), monstros (a era da Universal), humanos (Psicose, o Giallo e derivados) e até mesmo crianças. Representar o terror numa figura doce e vulnerável foi o mais chocante de filmes fraquíssimos como A Cidade dos Amaldiçoados até filmes magníficos como Os Inocentes. O horror, afinal, tornava-se o inesperado.

Há uma máxima de Hitchcock, igualmente, que falava sobre a diferença entre suspense e surpresa. I Trapped The Devil se mantém sobre um fio de suspense, veja bem: “Há um homem no porão“. O espectador só tem a palavra de Steve – que, sim, aquele homem é o diabo. Todavia, a única coisa que se sabe é que há um homem no porão. O suspense se baseia em como os personagens lidarão com isso. A surpresa será o que sairá de lá de dentro, já que, por mais suspense que haja, não sabemos qual será o clímax até o ato final. Se soubéssemos desde o início o que havia ali, o suspense seria maior que a surpresa, claro. Porém, Josh Lobo quer a valorização de ambos e decide trabalhar a atmosfera de loucura presente na casa. O cineasta sabe bem o caminho que quer abranger, construindo um filme com a essência do subgênero que está inserido e criando paralelos com o caos letárgico dos filmes de Simon Rumley (Fashionista). Naturalmente, o espectador passa a se sentir compelido a gritar: – meu deus! O que diabos tem naquele porão? (com o perdão do trocadilho).

A idéia central da resolução passa pela sutileza do mal. Afinal, como se imagina essa representação primordial do terror? Cemitério Maldito, terror mainstream em exibição nos cinemas catarinenses, age como que se a recusa da morte nos deixasse mais próximo deste mal primordial. Não busca a sua feição. Interessa-se pela natureza das coisas. Se abdicássemos de certas regras do regimento humano, nós estaríamos de volta ao primitivo das coisas – teríamos como base somente a nossa fé. Quando, portanto, o personagem de A.J. Bowen em I Trapped The Devil coloca a possibilidade de que o diabo, talvez, esteja mesmo no porão de seu irmão, ele não apenas está tentando se adaptar à uma linguagem incivilizada, ele está nos colocando diante da fragilidade de nossas certezas e ceticismo. A fé nos convida a jantar o prazer da ignorância. E é ela que nos choca, quando observamos que o mal pode não ser aquilo que idealizávamos.

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