Análise do filme “Estou pensando em acabar com tudo” e também da vida e do tempo

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Ao olhar para Jake, Lucy reflete que a principal expectativa de um poeta ao escrever um poema é encontrar alguma universalidade no específico. Os dois divagam sobre suas dúvidas, certezas e incertezas diante das coisas, num carro, enquanto viajam para a casa dos pais do personagem de Jesse Plemons. À primeira vista, a simplicidade do momento só é capaz de ser profunda para quem conhece o cinema de Charlie Kauffman (de Adaptação, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças e, mais recentemente, Anomalisa), onde tudo que é dito tem um por quê.

Numa viagem, nós parecemos em movimento, sem tempo para olharmos para nossa realidade. Podemos, enfim, viver o momento ou um vislumbre de quem poderíamos ser e de onde poderíamos estar. Não precisar de esperança. Porque tudo que precisamos… está ali. Nossa mente pode ser uma casa fria ou receptiva, dependendo do nosso presente. Ela é o que é. É nossa. Sem fuga. Quando nos confrontamos com outros momentos, complementamos certas coisas e reagimos a certas coisas. Por isso teóricos como Todorov descrevem que a relação entre viagem interior e viagem exterior vai da cumplicidade à hostilidade.

Em uma das primeiras cenas do filme de Kauffman, um emaranhado de flores num papel de parede é visto de cima a baixo, ao passo que a personagem de (uma fantástica) Jessie Buckley descreve que podemos esconder algumas coisas pelo nosso exterior, pela nossa face, pelo que dizemos; mas jamais podemos fingir um pensamento. Ele surge sem aviso. Ela pensa sobre isso, enquanto observamos traços de uma casa colorida, mas vazia e triste. Isso irá se refletir no figurino dela, antes de entrar no carro de Jake, quando vemos uma cidade colorida e, ela, vestindo vermelhos e amarelos fortes. Ele? Frio como a neve. Aos poucos, as roupas da personagem vão perdendo a cor à medida que se deslocam. Tudo é mutável, afinal.

Lucy chega à casa dos pais de Jake e se sente fora de sintonia. Ela fala em pintar cenários como reflexos de experiências, e o próprio em que ela está naquele momento traz a sensação de desconforto, de estranheza e de medo. O telefone toca e a voz de um personagem que nos acompanhava na sua própria vida rotineira fala para Lucy sobre uma terrível pergunta – aquela que se aproximará cada vez mais.

Qual é a pergunta? Num determinado momento, a própria Lucy reflete que outros animais vivem no presente, mas que os humanos não podem. Então, eles inventam a esperança. O zelador, interpretado por Guy Boyd, continua passando o mesmo pano, limpando o mesmo chão, na silenciosa escola; com seus poemas, sua arte, sua vida toda passando em sua mente – como algo que não aconteceu. Ele pode enxergar um mundo de possibilidades, o que poderia ter sido e o que de fato houve. Ele permanece enclausurado numa depressão que faz com o único lugar ao qual parece se sentir bem é em sua própria mente. Ele viaja, mas não sai do lugar – contrariando a ótica de Todorov (ou não).

Uma das cenas mais delicadas e simples desse filme é quando ele fala com Lucy nos labirintos de um colégio. Ele apenas diz: “eu estou vendo você”. Eles se abraçam, como se precisassem dessa confirmação. Ele não se importa que ela esteja ali, diante dele, uma última vez. As respostas para as indagações sobre o que de fato se passa no filme são quase insignificantes perto do que a obra transmite. Elas estão lá, claro, como quando a personagem de Jessie declama seu poema sobre ossos olhando para a câmera, quando se discute esquizofrenia e palco, quando Pauline Kael e David Foster Wallace são referenciados no quarto do pequeno Jake e depois retomados em conversas no carro ou quando ambos conversam sobre realidades subjetivas e que cores são produzidas no nosso cérebro, não no universo.

Eu só sei quem realmente sou quando vejo minha aparência ao passar na frente do espelho”, diz um dos personagens de Estou pensando em acabar com tudo. De certa forma, é difícil diagnosticar na jornada o quanto que vemos nos personagens são frutos de uma vida sofrida e o quanto vem da depressão. Essa resposta pode ficar mais evidente na cena final do longa-metragem, quando se há uma recompensa. Não é algo que pareça ter sido planejado. É algo que simplesmente aconteceu. E que agora se pode aceitar em paz. Um pensamento pode ser apenas um pensamento. Mesmo que ele se pareça tão próximo e palpável. Como um poema, um filme, um sentimento, um quadro sobre a natureza das coisas ou o pensamento de acabar com tudo.

Tudo nesta obra de Charlie Kauffman está “contaminado” pelo tempo. Onde estamos, onde nos sentimos, quem gostaríamos de ser e quem de fato somos. As lacunas são preenchidas por nossas percepções – sobre o tempo, sobre tudo.

Estou pensando em acabar com tudo (2020), de Charlie Kaufman, está disponível no catálogo da Netflix.

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