Baile: Retratos 3×4 de um Brasil pobre, mas cheio de esperanças

Compartilhe

“Conta até 90 para você ver como é bastante”

Um rosto antigo e cansado está parado para uma foto, talvez sua última, na casa de Lurdes. Ele não sorri. O rosto é de Dona Vanda, mas ele parece representar dezenas de milhares de mulheres brasileiras. A pequena Andrea, no auge de seus 10 anos, analisa a composição da cena com curiosidade. Ela observa o tratamento perfeccionista de sua mãe, que tenta dar àquelas pessoas o retrato de uma vida. No cenário, na frente das paredes descascadas, um lençol branco tenta produzir ares de estúdio a uma área de serviço, a qual serve tanto para tirar fotos quanto para cortar cabelos.

O enquadramento de Baile, o novo filme da talentosa Cintia Domit Bittar, é continuamente vertical, tal qual uma foto 3×4, sugerindo espaços comprimidos, vidas achatadas e projeções limitadas. Estamos diante de quadros conhecidos e demarcados por problemas sociais. Dentro da casa de Lurdes, os corredores e os quartos são estreitos, a geladeira é semi-abastecida e a sensação é intimista. Os assobios da bisavó de Andrea cantarolam Dominguinhos.

A câmera de Cintia parece passear pela vida, registrando, sempre verticalmente, o mundo cheio de retratos de Andrea. Ao sairmos com ela, o mundo parece grandioso. A velha Figueira surge edificante, ao passo que as coisas com que a menina tem contato maior se estabelecem mais visivelmente dentro do quadro. Observamos os rostos das crianças ao redor da árvore na praça e a classe parece próxima de Andrea nas explicações de sua professora, por exemplo.

A narrativa da cineasta engloba eficientemente o mundo limitado das crianças, ingênuo, sem perder um pouco de um sarcasmo quase travesso, igualmente. A parede de retratos cheio de homens na Assembleia Legislativa, é possível avaliar, surge de maneira assustadora – do ponto de vista juvenil. Porém, ao enxergar um espaço ainda vazio, Andrea inconscientemente registra a esperança e decide colocar seu próprio retrato 3×4 na parede de retratos da ALESC. É precisamente neste instante, inclusive, que Cintia pontua sua narrativa, ao abrir pela primeira vez a tela por completo apenas para mostrar um homem escorregando.

Será esse o futuro? É a esperança. Andrea já cultiva sua própria galeria de fotos em casa, afinal. Sua própria parede de retratos. De gente que é simples. De gente que é gente. De gente como Dona Vanda ou sua bisavó. Prontas para mais uma foto.

Andrey Lehnemann é crítico de cinema membro da Online Film Critics Society, a mais antiga e prestigiada associação de críticos de cinema online do mundo. É também jornalista, escritor e pesquisador. Foi o primeiro/único a ter uma coluna especializada no maior jornal de Santa Catarina e já foi produtor dos documentários catarinenses Risco 4 e O Incorrigível Muska – sendo um dos vencedores do Edital Catarinense de Cinema 2013/2014 por este último. Produziu Mostras de Cinema em Santa Catarina e possui livros publicados no Brasil. Mantém a coluna (Com)textos para a Revista Gulliver, mensalmente, sobre o cinema independente de SC, Brasil e mundo. Foto: Walace Lehnemann.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *