Graças a Deus e Finalmente Livres são alguns dos melhores filmes em exibição no Festival Varilux

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Como nos livramos de nossas histórias? Contando-as, certo? Expondo-as da forma mais honesta ou cômica possível. Quando a personagem Yvonne precisa contar para seu filho quem foi realmente seu pai, em Finalmente Livres, aos poucos a história vai ganhando ares mais dramáticos, sem perder a hilaridade. Precisamos de certas coisas para nos sentirmos confortáveis. E Yvonne tenta passar isso ao seu filho, ainda que não consiga se sentir consigo mesma. Descrevendo a narrativa em terceira pessoa, Yvonne, interpretada por uma incrível Adèle Haenel, acompanha passo a passo a fase mais dolorosa de um luto – a de descobrir quem o amado realmente era. Assim, o filme de Pierre Salvadori passa a servir como uma própria narrativa em que a protagonista se descreve e toda a ação que ocorre ao seu redor –ela pensa algo, Antoine age; os dois pensam ao mesmo tempo, confundindo narrativas; tudo acontece como se estivéssemos observando alguém contando sua versão dos fatos, com comicidade e profundidade. A luz que deixa os dois juntos num mar, desta forma, após Antoine tentar o suicídio e a “sua voyeur” o resgatar, demonstra o incômodo de alguém em se livrar do que a atormenta, da história que sente necessidade de continuar seguindo.

A narrativa, neste aspecto, conecta seu espectador com uma singularidade espirituosa, ao lidar com todos os personagens falando sobre coisas aleatórias sem dizerem o que realmente pensam, usando outros casos para se desligar da própria realidade – uma boa metáfora. A comédia também ganha com essa indiferença, como na cena em que um motorista de táxi passa a ouvir que está levando um criminoso de alta periculosidade no seu carro, um serial killer que tenta confessar seus crimes para um policial que está preocupado com sua vida amorosa ou a maravilhosa cena do assalto a joalheria (o início de tudo), quando há desde louvarias ao diabo até preconceitos contra o islã nada discretos de personagens aparentemente inofensivos. Ainda que Salvadori tenha problemas em criar sustentabilidade para seu suspense ou as decisões de Yvonne, Finalmente Livres é uma obra eficiente sobre a nossa necessidade de deixar um legado para trás, de deixar uma memória espetaculosa de lado e nos remeter ao que é real.

É, igualmente, o caminho que Inocência Roubada, percorre, ainda que seja por um viés mais duvidoso – retratando o abuso com comédia ou uma dinâmica que nada tem a ver com a dor exposta na narrativa. Mais do que a difusão aleatória das cores na narrativa, desde a direção de arte ao figurino (há roxo, amarelo, azul e verde com pouquíssima parcimônia), a estrutura de tentar arrancar leveza de situações constrangedoras na dinâmica proposta por Odette, que tenta se esconder em suas piadas da forma como foi abusada, sabota a dramaticidade dos dois atos finais do filme. Se nem a diretora quer levar aquilo a sério, por que o espectador deveria? Em Inocência Roubada tudo é dito e repetido (“Essa não!” ou “Estou feliz! Estou feliz!” acabam se tornando reações recorrentes) tanto quanto a direção de Andréa Bescond e Eric Métayer e a montagem de Valérie Deseine expõem o sofrimento de Odette da forma mais over que conseguem imaginar. As cenas em que voa, enquanto todos se encantam por ela estar fazendo terapia, ou a câmera se movendo de um lado para o outro durante o abuso, como se demonstrasse as investidas, são de muito mau gosto. Andréa parece não achar possível se expor sem ser visual, assim se mostra criança durante uma discussão com os pais, abraça seu eu infantil ou encara a porta mais uma vez no seu ato final. Uma porta que é associada com a completa falta de imaginação do início, diga-se. Uma porta que é usada apenas para criar uma “fusão espirituosa” com a passagem da infância para a vida adulta. A história de Odette sobre o abuso que sofreu durante anos de um homem que comprava seus pais com presentes caros merecia algo muito mais forte do que isso.

O filme de François Ozon, ao lidar com o abuso, no entanto, é muito mais ambicioso e menos caricato. Em determinado momento de Graças a Deus, por exemplo, uma personagem raciocina que a oportunidade de lidar com o próprio abuso que sofreu de seu vizinho na infância foi apoiar o seu marido a lidar com o próprio. Alexandre inicia o novo filme de Ozon procurando a hierarquia da igreja católica para apaziguar a sua dor e poder confrontar seu abusador. No tribunal da igreja católica, no entanto, as promessas de justiça são vazias e o medo institucional impera. O cineasta francês propõe, desta forma, estudar as diferentes formas da exposição de um abuso perante a sociedade, como conseguir justiça e, claro, as diferentes afetações diante dos estupros contínuos.

A cena inicial de Graças a Deus já consegue um impacto ao demonstrar uma figura católica levando sua cruz diante das cidades, diminutas lá em baixo. Ozon mostra a igreja como um grande templo do pecado, no início, algo que virá a guiar sua narrativa, mais tarde, até culminar na cena do terceiro ato em que um homem encara o templo de volta, de baixo para cima.  O francês evidencia desde o homem que não perdeu a fé (Alexander), mesmo diante de seu sofrimento, passando pelo cínico e eloquente (François) até chegar no mais afetado e doente (Emmanuel). A ambição do cineasta é desnudar as mais variadas camadas que um abuso da figura tratada como divina pode gerar no caminho das vítimas, com causa e efeito. Nós, assim, temos situações que passam pelos livros, igreja, família, desestruturação de uma família causada pelo abuso, mídia e política, pobreza, riqueza e classe média, perda de relacionamentos paternais, individualidade, violência, delegacia e julgamento. Aliás, Emmanuel se torna um dos personagens mais ricos do filme de Ozon por justamente ser o homem mais crível, ao se aproximar da mãe e deixar o pai de lado, depois de ser afetado por uma figura masculina de poder. É justamente ele que devolve o olhar acusatório para o templo católico, no final da narrativa, agora com coragem o suficiente para denunciar o que passou. Talvez o maior problema de Graças a Deus seja a alta exposição dos flashbacks, sem sutileza alguma: pelo contrário, o padre sempre olha para as crianças como um predador ou os ambientes que as recebe são sufocantes ou dominados por cores quentes. Igual fazem perguntas simples dentro de uma complexa estrutura. No terceiro ato, Alexander é indagado se ainda acredita em deus, mesmo que o filme todo tenha flertado com essa resposta. Algo que não precisaria ser perguntado ou dito.

Um Homem Fiel, do Louis Garrel, é um filme em que o individualismo é glorificado. Sempre que alguém pergunta sobre um sentimento que clama por empatia, alguém responde: “e o que isso significa pra mim?”. O diretor propõe uma forma de divagação machadiana, sem a mesma elegância do escritor. É uma espécie de Closer infanto-juvenil e para amantes de primeira viagem. Garrel não esconde estar se divertindo ou amando se colocar como o fetiche de perseguidoras, pré-adolescentes ou culpadas. É perceptível estar apaixonado pela própria prosa do filho-que-culpa-a-mãe-que-matou-o-pai-que-dormia-com-o-médico-que-dizia-que-era-gay-que-foi-visitado-pelo-novo-namorado-da-mãe-que-também-dormia-com-a-irmã-do-ex-marido-da-atual-namorada-e-que-antes-era-amante. Pelo menos, alguém se divertiu.

Os filmes estão em exibição no nosso parceiro, o Paradigma Cine Arte.

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