A zombaria do novo filme de Campanella é lúcida, metalinguística e inteligente

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Na primeira cena de A Grande Dama do Cinema, Juan José Campanella deixa um recado claríssimo que orientará o restante da sua obra: não existe uma pessoa na personagem de Graciela Borges, mas imagens cinematográficas que culminam no rosto de alguém que passará o resto de seus dias representando algo. Mara vive com Norberto, Pedro e Martín – um diretor, um ator e um roteirista, respectivamente. A vida que simulam é cínica, melodramática, quase novelesca, mas que ostenta toques de comédia e suspense na mesma intensidade. O argentino não esconde: ele está interessado na estrutura de seu filme, jamais na moralidade daquelas pessoas. E é por esta implausibilidade que a comédia do diretor ganha força.

É incômodo que em 2019 ainda se discuta moralidade cinematográfica. Um filme não precisa ser ético. Um filme precisa ser um bom filme. Caso esteja ancorando numa estrutura que gere o impacto que pretenda, é possível ser compreendido de forma orgânica. Há filmes com boas intenções que não são bons filmes, assim como há filmes com moral deturpadas que são bons filmes. O filme panfletário já não existe há décadas. Todavia, infelizmente, A Grande Dama do Cinema promete um final escandaloso para desavisados, ainda que seja admirável a forma como Campanella externaliza essa indiferença com a morte e com a vida. Os personagens estão interessados em ser personagens, em ser o que se espera de um roteirista, um diretor e um ator. O envolvimento é desta natureza, do deslumbramento. Martín, como roteirista, é o primeiro a estabelecer o papel de cada um na farsa dos corretores Bárbara e Francisco. A cena do jogo de bilhar é uma das melhores da trama, neste sentido, a listar os pontos chaves de uma narrativa e como conhecer cada camada do “jogo”. É igualmente eficiente a maneira que Norberto observa cada peça como um jogo de xadrez, buscando orientar o final que pretende, dirigindo cada um, no passo que Pedro continua uma representação de inocência quanto ao amor que iniciou 40 anos atrás.

A Grande Dama do Cinema carrega personalidades, sim, mas necessita apenas que elas sirvam para a comédia de sua trama. A acidez de cada um combina com a vivência de cada um. Ao conversar com o Pedro sobre sua traição, por exemplo, Mara desiste de olhar o que já foi e volta a tentar ser o centro das atenções – a fotografia da cena é destacável ao combinar o rosto projetado da juventude da atriz com quem ela passou a ser, algo que culmina num momento poético em que Pedro diz que ela não sorri mais como antes e vemos o sorriso sobreposto da atriz no filme do Sultão, 40 anos antes.

Juan José Campanella é um diretor finíssimo e, visivelmente, diverte-se com sua metalinguagem. Há cenas que pouco acrescentam a não ser servir como amparo para o terceiro ato, como aquela em que Norberto vai até o trabalho de Barbara ou a da aranha na mesa de centro. Porém, nada que estrague o satírico ponto de vista de Campanella ao lidar com o cinema nos bastidores e a nostalgia provocada em seus remanescentes. Mara, como o diretor evidencia, é apenas um retrato de outros iguais na mesma parede. O retrato de uma era. Um instante no qual o cinema era cheio de reviravoltas, frustrações, descontentamentos e saídas extremas. Sua espirituosa sequência final, onde a morte serve como alívio cômico pode incomodar exatamente por tratar a vida com uma zombaria instantânea, onde tudo é representado – seja no cinema ou não.

O filme está
em cartaz no nosso parceiro, Paradigma Cine Arte.

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